Budismo, meditação e cultura de paz | Lama Padma Samten

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A visão budista da questão cognitiva

O objetivo do presente texto é chegar a uma descrição clara e abrangente da forma budista de abordar a questão cognitiva. A palavra cognição refere-se aqui ao processo pelo qual se desenvolve a convicção de que algo é “verdadeiro”. O exame da cognição budista pode, por sua vez, ser encarado como uma forma de buscar maior liberdade e distanciamento frente aos próprios pensamentos, opiniões e tendências.

A “Nobre Verdade” budista

A abordagem budista da cognição resulta, dentro da linguagem e forma de operação mental humana, em uma atitude denominada nos textos sagrados budistas de “a Nobre Verdade”. É de grande importância este tema, uma vez que a doutrina do vazio, ponto essencial da visão budista, elemento central da compreensão budista unanimemente aceito em todas as linhagens, encontra na “Nobre Verdade” seu ponto de contato com a realidade contingente de todos os seres, objetos, propósitos, fatos materiais, fatos abstratos, psicológicos, biológicos, físicos, astronômicos, etc. Ou seja, é sob a expressão “Nobre Verdade” que vamos encontrar a harmonização da visão budista de vazio com a “realidade que nos rodeia”.

As palavras nunca terão um significado maior do que o das experiências que as geraram

A doutrina budista do “vazio” que, em um certo sentido, confunde-se em muitos pontos com a “Nobre Verdade”, não é a doutrina de que nada existe, como incorretamente poderíamos ser levados a pensar. A noção de “vazio” refere-se a que a realidade última de cada ser ou objeto é destituída de características próprias individuais e definidas. Os objetos existem apenas enquanto realidades convencionais, limitadas, espaço-temporais, condicionadas e contextuais; não existem separadamente e independentemente do observador. A “Nobre Verdade”, por seu turno, poderia ser resumida como a atitude que resulta da compreensão de que tudo o que é visto, é visto pela mente, e que tudo o que é visto pela mente é, na verdade, a mente vendo a si própria, vendo as imagens e objetos por ela mesma geradas. É como está expresso no Lankavatara Sutra, quando se diz que “a pintura não está na tela nem nas cores ou nas tintas”, ou “os ignorantes não compreendem que o que vêem é a mente vendo a si mesma”.

Isto não significa dizer, por exemplo, que o mundo externo efetivamente não existe, que as coisas não existem, mas procura-se entender com clareza o que significa dizer que um certo objeto existe ou o que significa a afirmação geral de que o mundo externo existe. Neste contexto, entender o significado dessas afirmações éconhecer seus limites de validade.

A filosofia budista é apenas uma forma passageira de sistematizar conhecimentos

A forma de trabalhar os elementos de convicção que vêm a explicitar e permitir a transmissão do sentido correto da expressão “Nobre Verdade” é sempre a forma experimental, ou seja, busca-se através de experiências vividas concretamente ou de experiências vividas em processos de imaginação, a vivência direta de cada um dos aspectos da “Nobre Verdade”. Aqui citamos este método didático como uma característica do processo de transmissão da “Nobre Verdade”, mas, de fato, este é o método geral de se abordar todas as questões no budismo, e o sentido real de todas as conclusões a que se venha a chegar é sempre remetido à experiência mental ou concreta que o gerou; sua abrangência não é maior nem menor. As palavras, assim como toda e qualquer forma de comunicação, nunca terão um valor e um significado maior do que o valor e significado das experiências que as geraram.

A Nobre Verdade é um elemento essencial na doutrina budista porque permite a transição existencial individual de uma busca externa, de um caminhar externo no “mundo”, para uma busca interna. Ao compreender-se a essência da Nobre Verdade, compreendesse que o que é visto externamente é sempre a projeção mental de um acúmulo de tendências e experiências prévias, o que, no budismo, é genericamente entendido como o “karma”. É justamente este conjunto de tendências que irá dar sentido às experiências e irá mesmo conformar a realidade que, de modo inteiramente automático, é vista de forma nítida, palpável, vívida.

A prática budista visa a depuração de todo o condicionamento inconsciente

A experiência de vivenciar a “realidade externa”, quando é desse modo encarada, torna-se a manifestação de todo um “mundo interno inconsciente”, que é, por sua vez, reconhecido como o resultado de experiências mentais concretas ou abstratas anteriores (na visão budista não há diferenças entre estas duas opções, pois toda experiência concreta é sempre mediada pela mente, sendo, em suma, uma experiência mental abstrata também). Este enfoque permite que se passe a descortinar um vasto campo de estudo e trabalho onde o surgimento de cada discriminação à mente é visto como um resultado da operação mental inconsciente. Neste contexto a palavra “inconsciente” não tem qualquer sentido eternalista, ou seja, a palavra inconsciente não se refere a algo que, imagina-se, exista de modo efetivo e permanente, mas, neste contexto, esta palavra significa apenas a atividade mental que não é vista em seu processo, mas é reconhecida exclusivamente por seus resultados.

Examinando-se a “realidade externa” dessa forma, nenhuma diferença se encontrará, enfim, entre esta “realidade externa” e a “realidade interna”; ambas fundem-se, tornando-se indistinguíveis.

Ainda que um livro seja um livro, para a traça ele é um manjar

É justamente este vasto campo de estudo e trabalho que oferece a melhor oportunidade de contato entre o pensamento religioso budista e a filosofia e psicologia de todas as cores, matizes e origens. É também aí o ponto de florescimento da filosofia budista, ainda que a filosofia budista não possa ser considerada uma forma de busca à verdade eternalista última das coisas, mas tão somente uma forma relativa, condicionada e passageira de sistematizar conhecimentos do mundo e do processo de cognição, de modo que, na existência das atuais formas de operação mental condicionada, seja possível o reconhecimento desses condicionamentos e seja então possível reconhecer a natureza da libertação. Reconhecer a condição humana, a contaminação inerente a todo o processo cognitivo e a natureza da libertação, é tudo que a filosofia budista pretende enquanto Filosofia. É o seu limite.

Neste ponto inicia-se a prática budista propriamente dita, que visa a depuração de todo o condicionamento inconsciente, de forma que a operação mental possa vir a manifestar a completa ausência de jogos cegos e de condicionamentos enquanto tal.

As três contaminações inerentes à noção de ‘objeto’

Vamos aqui utilizar a expressão “contaminação” no sentido de “perturbação involuntária e automática do processo de compreensão pelo surgimento de idéias e imagens mentais provenientes de experiências anteriores e que atribuem sentidos cognitivos previamente condicionados às experiências sensoriais e abstratas da mente humana”.

A primeira contaminação

Seguramos um livro em nossa mão. Um livro é inequivocamente um livro. Podemos apalpá-lo, abrir suas folhas, examinar o texto. Verificamos facilmente que há uma posição correta para que ele possa ser lido. Podemos identificar em que língua foi escrito. Podemos sentir claramente a completa concretitude do livro. É inequívoco. O que mais seria um livro que não um “livro” mesmo? Esta é a primeira contaminação mental da visão, a que surge no trato com os objetos “concretos”, a que dá uma realidade única e inequívoca aos objetos “concretos” com que lidamos. Por que seria isso uma contaminação mental? Em que sentido há algum equívoco nesta compreensão tão evidente e clara?Há um célebre diálogo entre dois grandes homens, dois grandes pensadores, Albert Einstein e Rabindranath
Tagore, que ilustra bem esta questão. Este diálogo ocorreu em Berlim, quando Einstein, já um Prêmio Nobel de Física, recebeu em sua casa o poeta e filósofo Tagore, Prêmio Nobel de Literatura. Conversavam os dois sobre a questão da realidade do mundo concreto que vemos, e Tagore utilizou o exemplo de um livro para mostrar que, ainda que o livro seja efetivamente um livro, para uma traça é, de modo igualmente concreto, um manjar. Estaria a traça equivocada? Haveria algum erro de avaliação ou de percepção no comportamento da traça? Seria apenas a situação de uma insensibilidade brutal da traça frente a sutileza da mente humana que é capaz de apreciar os livros e extrair deles deleite, conhecimento e emoções?

Evidentemente não. Uma traça comporta-se de forma inteiramente correta quando se alimenta de um livro, e da mesma forma nós, quando vemos e utilizamos um livro, também não estamos cometendo nenhum erro. As interpretações não se contrapõem, se complementam. Um livro é alimento de traça e alimento mental para os homens que conseguem lê-lo.

A visão convencional atribui realidade concreta única ao que surge à mente pelos sentidos

Neste ponto podemos entender melhor o que significa esta primeira forma de contaminação mental, a que ocorre quando interpretamos de forma automática e condicionada os estímulos sensoriais que nos atingem. Esta primeira forma de contaminação é admitir que os objetos concretos que nos surgem aos sentidos e daí à mente, sejam um tipo de realidade concreta pré-existente com a qual então estamos nos relacionando.Este primeiro nível tem também duas subdivisões: Em primeiro lugar podemos admitir que a visão que temos se refere a um mundo que existe de forma concreta e inequívoca, e portanto todas as outras visões são incorretas. A segunda possibilidade é admitir que estamos lidando com a maneira correta de ver as coisas, mas outras possibilidades mais limitadas e imperfeitas existem, e outros seres e pessoas podem, por operarem de uma forma limitada e imperfeita, chegar a outras conclusões e até mesmo usar, com sucesso, estas interpretações em seus propósitos, limitados. Estas conclusões e formas de interpretar podem até se revelar úteis e interessantes, mas são de uma qualidade inferior, pois a realidade é pré-existente e tem apenas uma face.

Então, resumindo, a primeira forma de contaminação mental que surge no processo de visão convencional é atribuir uma realidade concreta única ao que nos surge à mente a partir dos estímulos sensoriais. Este processo é automático e inconsciente, e as conclusões são inteiramente convincentes, não nos permitindo qualquer distanciamento ou “defesa” mental possível, pois se apresentam de forma inteiramente clara, sem qualquer sombra e sem que qualquer esforço seja necessário.

A segunda contaminação

Os alunos entram em aula e vêem no quadro negro um desenho feito pelo professor, um cubo. Fitam todos um cubo desenhado, suas doze arestas e oito vértices, e o vêem como um cubo. Esta é a segunda forma de contaminação da visão: aquela que atribui uma realidade imediata, automática e concreta a objetos abstratos. Quem não concordaria de que se trata efetivamente de um cubo? Quem não concordaria com sua realidade, com a existência de seus seis lados, doze arestas e oito vértices? Qualquer pessoa que visse um número diferente de lados, arestas ou vértices certamente estaria equivocada.A imagem de um cubo penetra nossa mente sem deixar sinais, parece inteiramente natural, completamente correta, somos completamente indefesos frente a isso.O cubo, no entanto, como evidenciado por L.Wittgenstein no “Tractatus”, permite que se evidencie com clareza ainda maior este processo de contaminação.

Quando fitamos vértices diferentes [experimente fitar o vértice “A” do cubo, e após fiteo vértice “B”], vemos(!) clara e nitidamente, cubos diferentes! Como é isso possível, se o cubo desenhado não foi alterado, é o mesmo que sempre foi? Como é possível que urna mesma realidade concreta (o desenho) seja capaz de oferecer diferentes visões ao mesmo observador, bastando apenas que este desloque o ponto focal de sua visão de uma posição para outra no mesmo desenho?Se a imagem de cubo que surge em nossa mente é perfeitamente normal e natural, por que, do mesmo modo natural e normal, surge uma outra imagem com a mesma aparência de realidade para o mesmo objeto? A concretitude com que estes objetos aparecem é a segunda forma de contaminação da visão: aquela que atribui uma realidade imediata, automática e concreta a objetos abstratos.

Nesse ponto podemos entender o significado de “contaminação” na experiência com objetos abstratos, ou seja, podemos compreender o sentido da expressão “Perturbaçãoinvoluntária e automática do processo de compreensão pelo surgimento de idéias e imagensmentais em experiências cognitivas com objetos abstratos”.

A terceira contaminação

Até o momento examinamos as duas primeiras contaminações que ocorrem no processo cognitivo: as que surgem no contato com objetos “concretos” e as que surgem no contato com objetos “abstratos”. Vamos ver agora a terceira contaminação, a mais sutil, a mais delicada de todas, a mais insinuante, a contaminação que está sempre presente no processo cognitivo e na linguagem cotidiana. Tocamos em um objeto com a mente através das teorias e não temos defesa frente a isso. Esta é a terceira forma de contaminação mental, a mais sutil delas.

Um objeto destituído de características é o que chamamos de objeto inexistente

Na tradição Zen, existe o “koan”, que é uma pergunta que não tem resposta lógica possível, e serve para quebrar a rigidez da compreensão do discípulo; a resposta não importa, o relevante é trabalhar-se com a pergunta mesmo. Neste ponto é interessante lembrar o Koan das mãos que se batem. O mestre bate uma mão espalmada contra a outra, bate palmas, e pergunta ao monge-discípulo: “qual é o som que vem de apenas uma das mãos? Não há resposta possível. Como compreender esta pergunta e o que ela pode trazer como compreensão? Este koan exemplifica a noção de objeto e suas limitações. A noção de objeto pressupõe a separação entre sujeito e objeto e a idéia de que as propriedades pertencem apenas a um e não ao outro.Examinemos os objetos que nos rodeiam e examinemos a forma pela qual eles nos surgem como objetos com realidade permanente e separada. Quando vemos um objeto, abstrato ou concreto, como tomamos consciência de sua existência? Como sua existência surge aos nossos olhos? Sua existência se dá a partir de suas características. Um objeto destituído de características é justamente o que chamamos de um objeto “inexistente”.

Esta acepção aqui atribuída ao termo “inexistente” aplica-se não apenas a objetos concretos, mas aos abstratos também, e as características não precisam ser objetiváveis e universalmente aceitas, mas meramente existentes, mesmo que isso valha apenas para uma pessoa. Em qualquer desses casos, considera-se que características existem: concretas, abstratas ou até mesmo delirantes. Sendo assim, está presente esta terceira forma de contaminação do processo cognitivo. Quando se fala em “características”, assume-se implicitamente que o objeto em foco é o possuidor dessas “características”; este ponto é muito importante e por isso vamos examiná-lo em maior detalhe.

Batemos uma mão contra outra. Sendo as mãos iguais, a qual delas pertence o som? Oque significam as “características” de um objeto? Para tentar responder aesta pergunta, vamos examinar um pequeno exemplo onde atribuímos características a objetos concretos: vamos examinar vários objetos quanto ao seu SOM. Vamos bater com a mão espalmada sobre uma mesa que esteja próxima, depois sobre um livro, após em uma parede, e em uma cadeira, etc. Um após o outro, os objetos produzem sons diferentes que os caracterizam. Podemos repetir este processo algumas vezes, se n
ecessário, até que, mesmo com os olhos fechados, ao ouvir o som possamos identificar perfeitamente o objeto que o produz. Mesmo crianças podem fazer isso com facilidade, até mesmo animais como cães e gatos podem ser treinados assim, assenhorando-se dessa aptidão, a ponto de não errarem as identificações. Quando interpretamos isso, reconhecemos os vários sons como, de forma inequívoca, efetivamente pertencentes aos vários objetos; e essa interpretação é automática, fácil, natural, não deixa dúvidas. Vamos agora repetir. Batemos na mesa, no livro, na parede, na cadeira, ete., cada objeto mostra novamente o seu som, e assim vamos trocando de objeto e obtendo as várias respostas, até que batemos uma mão espalmada contra a outra. Neste momento surge então a pergunta, sendo as mãos iguais: a qual delas pertence o som? Esta pergunta é reveladora. É uma pergunta que não pode ser respondida. Na verdade, é um convite ao exame mais detalhado dos pressupostos que atribuem sentido e tangibilidade às características dos objetos.

Sendo as mãos iguais, a qual delas pertence o som quando batemos palmas? Quando batíamos sobre a mesa, o som era da mesa, o mesmo com a parede, com a cadeira, com o livro, cada um revelando seu som. Quando batemos uma mão contra a outra, percebemos que em cada caso o som foi sempre produzido tanto pela mão quanto pelo objeto tocado. É impossível separar. Mas nossa interpretação foi sempre a de que o som pertencia ao objeto tocado, era uma característica dele.

A Teoria Quântica é hoje um tema central de estudos para físicos e filósofos

Esta é a forma mais sutil de contaminação mental do processo cognitivo, a que, implicitamente, atribui realidade separada a objetos e observador. Todas as características que podem ser encontradas em objetos, nomeadas, classificadas, etc., todas são o resultado deste tipo de simplificação, aque admite que o objeto pode, enfim, revelar características próprias, e em nenhum momento considera que qualquer característica é apenas uma espécie de interpretação automática do fenômeno ocorrido em um processo de relação. Esta forma de contaminação mental está presente sempre em nosso raciocínio e em nossas verbalizações. Aprópria linguagem é estruturada em função das características de objetos separados, e tudo é assim descrito.Na área da física, Niels Bohr, especialmente, foi quem conseguiu introduzir correções a esta forma de pensar e de se expressar, e conseguiu não apenas distanciar-se desta forma de “ideologia automática” como chegou a formular um sistema filosófico que escapava destes problemas sem ficarlimitado ao imobilismo. Seu sucesso foi tão grande que a Teoria Ouântica é hoje um tema central de estudo tanto para físicos como para filósofos, sendo a base para a importante evolução científicae tecnológica ocorrida em meados deste século.

Sua visão filosófica,a “complementariedade”, pode ser vista como uma forma avançada de estruturar o conhecimento convencional, sem deixar-se limitar pelos pressupostos e paradoxos que decorrem dos equívocos das interpretações condicionadas.

Na forma de estruturar o conhecimento, como desenvolvido por Bohr, apalavra “objeto” inclui agora não apenas o que convencionalmente é entendido como o “objeto” experimental, mas também o equipamento experimental de laboratório usado nas medidas e as teorias que geraram as perguntas.

Seria inócuo preciosismo filosófico afirmar que objetos são inseparáveis do observador?

Podemos então resumir o que foi até aqui examinado, lembrando que os pontos principais até agora expostos foram a existência de condicionamentos automáticos em nossa operação mental. Estes condicionamentos são responsáveis pelo surgimento, emnossa mente, de idéias, interpretações e mesmo visões claras, que se revelam úteis emmuitos sentidos, porém equivocadas em outros, e passíveis de gerarem paradoxos insuperáveis dentro de sua forma de operação e atribuição de significado. Por razões didáticas, eles foram apresentados emtrês níveis diferentes: os condicionamentos provenientes da experimentação com os sentidos físicos, os provenientes da experiência abstrata, e, finalmente, os automaticamente existentes por força da utilização ingênua do processo cognitivo e linguagem condicionados, tomados emsentido absoluto.

O exame desse último ponto completa-se com o exame das “três formas condicionadas de tocar em um objeto no processo de determinação de suas características”. Esta expressão, evidentemente, só tem sentido condicionado, e ela mesma será, a seguir, cuidadosamente examinada quanto a sua consistência e amplitude.

As quatro formas de relação com um objeto

O objetivo desta parte é examinar os limites de validade do conceito de “objeto” nas próprias experiências em que estes objetos se afirmam como tal, ou seja, nos processos de relação. É também objetivo desta parte explicitar o fato de que os objetos podem ser “perturbados” e “tocados” de forma mais ampla do que estas palavras aparentemente significam. Quando aqui se fala em objeto, estamos usando esta palavra no sentido de “objeto concreto” como convencionalmente este objeto é pensado, ou seja, existente por si mesmo e situado no espaço e no tempo. A primeira forma condicionada de relação com um objeto é tocá-lo, senti-lo pelo tato de forma palpável e concreta. Quando tocamos um objeto dessa forma, sentimos sua presença de um modo objetivo e inequívoco. O objeto tem toda a concretitude e realidade que pode ter. Podemos ainda cheirá-lo, batê-lo de encontro a outros objetos, bater contra ele de modo a extrair som dele, assim como experimentá-lo quanto ao sentido gustativo. Examinando-o desta forma completa, chegamos a uma visão abrangente desse objeto.

Que limites podem haver para a sua realidade? O objeto é obviamente existente, e mesmo que dele não se possa tomar conhecimento, em algum lugar estará. Caso seja deixado em algum lugar, lá estará mesmo que não esteja sendo visto, e a qualquer momento pode-se chegar lá e tornar-se a vê-lo. Qual é então o sentido de afirmar que este objeto, assim como os objetos em geral, é dependente do observador, é inseparável do observador, constitui um “todo” com o observador? Não seria isto um inócuo e irritante preciosismo filosófico?

Com paciência toma o oleiro uma bolota de barro. Mistura um pouco mais de água e amassa-a. Põe a bolota na mesa rotativa e alisa-a enquanto gira. A bolota segue girando, e o oleiro, com a mão, começa a moldá-la. Em que momento a bolota deixa de ser bolota e passa a ser um vaso? O que é necessário para que isso ocorra? Este é um ponto importante que precisa ser bem compreendido. Qual é a essência da transformação bolota-vaso? Qual é a essência do surgimento do vaso? O que significa dizer que o vaso então surgiu, que o vaso passou a existir? O vaso está sobre a mão. Podemos apalpá-lo, cheirá-lo, sentir seu gosto, sentir seu som, podemos captar sua forma e desenhá-la sobre uma folha de papel. Mostrando este desenho a outros, estes reconhecerão tratar-se do vaso. Qualquer pessoa reconhecerá, no vaso, um vaso.Mas e a bolota? Onde está? Seria correto chamar o vaso de bolota? Não! O bom senso nos diria que obviamente abolota não mais existe, a bolota de barro é a base que originou o vaso. No momento mesmo emque o vaso passou a existir, a bolota desapareceu.

Voltemos, no entanto, à questão. Existe alguma diferença estrutural, existe algum componente no vaso que não existisse anteriormente na bolota? Se vamos examinar sob o ponto de vista da base material constituinte, a resposta é não. Onde está então a diferença?

Sem a projeção mental não há a discriminação de objetos. Você consegue compreender que o vaso é em tudo semelhante ao cubo desenhado no quadro da sala de aula? E este cubo como é que surgiu? Está no quadro-negro da parede? Se estiver no quadro-negro, como pode ter três dimensões se o quadro-negro só te
m duas? Se não está no quadro-negro, como, ao apagar o quadro-negro, desaparece também o cubo? Estaria a essência do vaso sobre o barro? Se estiver sobre o vaso, porque a própria bolota já não mostrava o vaso? Se não está sobre o barro, porque não surge nenhum vaso na ausência de barro? Todas estas indagações e exemplos são para que se possa vivenciar a compreensão de que a mente participa do ato de criação dos objetos vistos. Sem a projeção mental não há a discriminação de objetos.

Qual é a diferença entre o cubo desenhado no quadro-negro e um cubo construído em arame? Certamente existem diferenças objetivas, mas (sob o ponto de vista da discriminação ambos ocupam a mesma classificação, ambos utilizam a mesma forma mental pré-existente, o mesmo “arquétipo”, o cubo. Não havendo o cubo de arame e nem o cubo do quadro-negro, não haveria cubo a ser discriminado e assim não haveriam cubos, mas havendo estes cubos e não havendo a projeção mental, nenhum cubo haveria do mesmo modo. Compreendendo-se isso, pode-se compreender o sentido da afirmação de que, desaparecendo a humanidade, o universo inteiro desaparece, ou a afirmação ainda mais extraordinária de que o universo surge e desaparece a cada instante, a cada pensamento, ou ainda a afirmaçãode que até mesmo o passado e o futuro passam por mudanças incessantes [uma vez que é no presente que tomam forma, através da mente dos que pensam].

Qual a diferença entre uma pedra e uma flor? Sem dúvida, poderíamos encontrar muitas, mas, olhando do contexto mais sutil, poderíamos também dizer que são o mesmo, pois a essência de ambas é a mesma, ambas são discriminações, projeções mentais. A palavra contexto descortina aqui este aspecto crucial da compreensão budista: as verdades relativas são todas elas contextuais, ou seja, são válidas, inequívocas, úteis, corretas, verificáveis experimentalmente, mas sempre dentro de limites de validade, sob a égide dos pressupostos que lhe dão este sentido de verdade palpável.

Existindo verdades relativas, haveriam também as absolutas? No sentido budista, a verdade relativa sobre um vaso é, por exemplo, que caindo ao chão, quebrará, ou que se pode colocar plantas dentro, ou ainda que é feito de barro. Já a verdade absoluta sobre um vaso é que não há um vaso em si mesmo, independentemente. Este é o sentido de verdade absoluta no budismo. No budismo, o sentido de verdade absoluta refere-se, portanto, aos aspectos cognitivos, e não aos aspectos relacionais.

Na física quântica, tocar significa perturbar, e perturbar significa interagir

Em resumo, nessa primeira parte vimos como sobre um objeto completamente palpável podem haver duas verdades, uma relativa, relacional, na qual o objeto surge e tem existência, colocando-se dentro de um contexto com funções e propriedades definidas, ainda que não permanentes, e onde a característica fundamental desta existência relativa ou relacional é justamente a impermanência. E vimos como sobre ele ainda há uma segunda forma de verdade, esta absoluta, a verdade de que sua existência relativa não é independente ou auto-sustentada, mas dependente da operação abstrata de uma mente que o discrimine. Denominamos o senti-lo sensorialmente como “a primeira forma condicionada de relação com um objeto”. A segunda forma condicionada de relação com um objeto é tocá-lo de forma indireta, ou seja, é delimitá-lo, por exemplo, através da luz que é feita incidir sobre ele, ou através de outros agentes como outros tipos de radiação. Poderíamos resumir isto pela palavra “interagir”. As palavras “interagir” e “tocar” têm, neste contexto, sentido idêntico a “perturbar”. É exatamente o sentido que a elas é atribuído na física quântica, e na interpretação complementar de Niels Bohr. Na física quântica “tocar” significa “perturbar”, e perturbar significa interagir e determinar novos valores para as características do “objeto” em foco. No sentido quântico, “medir” um objeto é tocá-lo, é perturbá-lo, é fazê-lo perder as características que anteriormente poderiam ser atribuídas a ele. [na física nuclear]

Ao fitar com os olhos um objeto, ao examiná-lo pela visão, parece que não se está interagindo com ele, parece que o objeto é independente, existe por si só e é então fitado sem que isso acarrete qualquer perturbação. Os olhos, de fato, não perturbam fisicamente o objeto, mas o fato de o verem significa que o objeto foi atingido por luz ou por outro agente e, sendo assim, foi perturbado. O que se vê do objeto nessas circunstâncias é o fenômeno de interação, o resultado da relação entre ele mesmo e a radiação luminosa que o atinge. Quando aqui usamos as palavras “ele mesmo” e “radiação luminosa que oatinge”, isto não significa que estejamos atribuindo realidade última separada ao objeto e à radiação luminosa, o que seria praticar uma forma de eternalismo, mas estamos usando estas palavras dentro do contexto limitado em que fazem sentido.

Toca-se em um objeto pela predisposição consciente ou inconsciente de encontrá-lo

Usando a linguagem da física, poderíamos dizer que o corpo físico de um ser humano está a uma temperatura de aproximadamente 37°C; em temperatura absoluta na escala Kelvin, estes 37°C corresponderiam a aproximadamente 310 graus. Caso o ambiente não emitisse radiação térmica sobre os humanos, estes rapidamente congelariam e perderiam a vida. Ou seja, constantemente nos mantemos vivos justamente por receber radiação térmica do ambiente, mas quando olhamos o ambiente ao nosso redor ou fitamoso nosso corpo, não percebemos o grau de correlação íntima que há entre ele e o ambiente.Não percebemos como a existência deste corpo humano é constantemente construída também pela energia térmica recebida do exterior na forma de radiação. Nossa tendência é ver nossos corpos como objetos independentes e auto-suficientes, interagindo com o ambiente quando muito através do alimento e do ar. Da mesma forma nos é difícil perceber como os objetos que vemos ao redor são construídos emsua aparência pelos estímulos sensoriais que nosso corpo recebe a partir da incidência, sobre estes objetos, de luz visível, por exemplo. Nossa mente os vê como objetos com características definidas, independentes de qualquer relação externa. Chama-se isto de “a segunda forma de relação com um objeto”, a que se dá através de um mecanismo físico que ficaoculto à visão e à linguagem convencionais.

A terceira forma condicionada de relação com um objeto é ainda mais sutil; toca-se em um objeto pela própria  predisposição mental consciente ou inconsciente em encontrá-lo. Toca-se em um objeto pela própria predisposição mental que se tem. Esta forma de predisposição mental manifesta-se também como as teorias físicas, como as certezas prévias, como as perguntas, e especialmente como o contexto cognitivo reservado mentalmente para o objeto ocupar.

A escolarização enriquece, mas retira ao mesmo tempo a capacidade de ver o novo

As projeções mentais que são realizadas de forma inteiramente automática e oculta à operação mental consciente, e que dão forma e realidade a tudo o que é “visto”, operam a partir de quadros referenciais complexos onde o “ver” se resume, na maior parte das vezes, em classificar apenas. Estes “quadros referenciais”, que aqui estamos chamando também de “contexto cognitivo do objeto” é que são, de fato, a imagem inconsciente que temos de cada objeto e que surge de acordo com as circunstâncias. A maior parte da atividade mental é classificatória, é incluir o objeto em alguma das possibilidades de definição previamente existente para ele. A criação mesma da estrutura do contexto cognitivo de um objeto é uma atividade muito rara que podemos chamar de “atividadegenuinamente criativa”. Ao fitar o ambiente que temos ao redor, podemos perguntar: quais são as cores que vemos? A resposta será invariavelmente amarelo, vermelho, azul, branco, etc. Qu
e outras respostas poderia haver? XYZTRW, ou SR300? O que significam estes símbolos estranhos? Quem seria capaz de ver cor que já não fosse uma cor?

No mundo psicológico isto é muito fácil de perceber. Um professor em sala de aula não vê pessoas, vê alunos; um vendedor vê clientes, uma mãe vê filhos, um marido vê a suamulher, um policial vê contraventores, um pivete vê oportunidades, e assim por diante. Todos estão corretos, todos operam de maneira adequada em suas funções, mas todos, ao operar assim, são incapazes de ver opções que estejam fora de seus “quadros referenciais”, fora dos contextos cognitivos previamente reservados de forma inconsciente e muitas vezes criados através de muito esforço, de muito estudo ou de um treinamento difícil, mas em todos estes casos, por meio de pensamentos anteriores. Assim são construídos os quadros referenciais, por pensamentos. Como os humanos se comunicam com base em quadros referenciais bastante complexos e sutis, necessária se torna a escolarização, pois é este treinamento que permitirá que a comunicação abstrata e simbólica se dê de modo mais preciso e mais livre das naturais distorções.

Quando mencionamos um objeto, assumimos implicitamente sua existência separada

É possível, neste ponto, entender-se como é um objeto “perturbado”, “tocado” por este processo inconsciente de escolha do quadro referencial? É possível perceber que a escolha do quadro referencial automaticamente exclui todas as outras possibilidades de classificação e elimina a necessidade de operar-se com a capacidade criativa de buscar novos quadros de referência? O processo de escolarização enriquece a pessoa, sem dúvida, mas ao mesmo tempo retira dela a capacidade de ver o novo. Os quadros referenciais são como estradas fáceis, planas e boas, sua existência é ótima, mas tornam quase sem sentido a busca de outras alternativas. O objeto é “tocado” pelo quadro referencial, é “perturbado” pelo fato de que as faces que possa apresentar estão já definidas. No formalismo da Teoria Quântica isto é bem visível, e seu grande mérito é permitir que este fato esteja claramente presente na própria estrutura do formalismo.

O outro mérito inestimável deste formalismo é prever um mecanismo de transição entre as várias visões possíveis, reconhecendo que algumas delas são mutuamente excludentes. Estes fatos formais, quando vistos com olhos eternalistas, parecem incompreensíveis, mas nada mais expressam do que arealidade cognitiva naqual amente humana opera. Os “saltos quânticos” e a operação dos “projetores” são exemplos disso.Podemos dizer que, nesta terceira forma de relação com os objetos, os objetos são mesmo “construídos” em suas opções pela escolha inconsciente do quadro referencial. É esta forma de interação que está presente em uma “medida” quântica e que determina as opções do objeto, fazendo-o “repentina e instantaneamente” dar um “salto quântico” definindo-se quanto ao “estado quântico” que ocupa.Esta terceira forma condicionada de relação e “perturbação” é a mais intensa de todas as formas de “perturbação” de um objeto. A quarta forma condicionada de relação com um objeto é a “menção” a ele, é citá-lo, é referir-se a ele por palavras. Quando fazemos isso, estamos assumindo implicitamente sua existência separada, estamos criando “objetos separados”.

A própria sintaxe das línguas indo-arianas com seus verbos, sujeito, predicado, adjuntos, exige que tratemos de objetos “isolados”, e assim, aprópria forma verbal estabelece um quadro referencial impossível de ser superado dentro dela mesma.

Há uma boa razão para nós, no Ocidente, examinarmos detidamente o budismo

Neste contexto é interessante e oportuno um exame acurado da linguagem da teoria quântica, pois que esta oferece um excelente exemplo de como superaras limitações da linguagem e de seu formalismo sem o abandono da racionalidade e com a manutenção do determinismo no nível em que é possível. Também parece importante examinar a contribuição cultural dos povos de longa tradição com escrita ideográfica como, por exemplo, a cultura chinesa e, em um certo sentido, a japonesa. Para concluir, gostaria também de chamar aatenção para a cultura budista, independentemente da linhagem de transmissão ou de fatores culturais dos países onde se desenvolve. A cultura budista tem em sua base o reconhecimento de todos os aspectos cognitivos aqui assinalados, e sendo uma cultura milenar, sucessora, por sua vez, de culturas ainda bem mais antigas, traz muitos exemplos nítidos e vivos da inserção desta compreensão mais sutil e poderosa em todos os aspectos da vida e, sem dúvida, também da morte. Esta é uma boa razão para nós, seres humanos no Ocidente, também examinarmos detidamente o budismo.

 

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