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Budismo, meditação e cultura de paz | Lama Padma Samten

Coemergência

Trecho de ensinamento dado por Lama Padma Samten em um retiro no Rio de Janeiro, em novembro de 2010.  

Eu estava aqui, provando que os objetos não existem, mas agora eu vou trocar o argumento; enquanto eu digo que o objeto não existe, ele está separado – ele está lá e eu estou aqui – agora eu começo a entender a forma pela qual o objeto surge. Quando eu entendo a forma como o objeto surge, isso vale para qualquer coisa, qualquer emoção que brote em mim, qualquer impulso que brote, qualquer imaginação enlouquecida: tudo isso são objetos, não apenas as coisas tangíveis. Todas elas são objetos, porque tem um observador que está vendo alguma coisa. Nós precisamos reconhecer isso, que é a essência do Prajnaparamita, o ensinamento do Buda. Então, nós vamos olhar para todas as coisas com esse olhar e nós começamos a perceber a coemergência: o surgimento dos objetos inseparável de uma posição mental; a paisagem da mente que vai dar forma ao objeto.
Um exemplo muito simples disso é a reciclagem de lixo. Algumas pessoas vão dizer que o lixo não existe. O lixo é alguma coisa que alguém, com uma determinada postura de mente, vê como lixo, mas o lixo não existe, porque, se eu olhar para cada uma daquelas coisas que constituem o lixo, eu posso ver uma utilidade para elas; se eu não vejo utilidade, brota a categoria lixo! Mas, quando eu olho para as coisas de forma suficientemente aberta, eu começo a achar utilidade para elas; isso significa que o lixo começa a desaparecer da minha frente como tal, pois começa a surgir gente um pouco mais criativa que vê aquilo de outra forma. Olhando para o lixo em geral, há pessoas que pensam: “se eu queimar isso, eu gero energia e com essa energia eu produzo energia elétrica”. Existem usinas de produção de energia elétrica a partir de lixo queimado.
Haverá uma outra pessoa que diz: “a parte orgânica, eu reciclo e produzo adubo!” E outros que olham e começam a dar novo significado, pedaço por pedaço, ao que está ali: estão fazendo reciclagem. Essa reciclagem tem que começar na mente, ou seja, surge uma outra paisagem que vai olhando para as coisas e vai separando: “isso aqui é papel, isso é metal, alumínio”. Outros não estão nem fazendo essa separação, eles estão trabalhando com o conceito de reutilização; no conceito de reciclagem, eu pego uma coisa e aquilo vira uma outra coisa; no conceito de reutilização, eu pego aquilo e dou um jeito de utilizá-lo novamente; não preciso desmembrar, dissolver aquilo para produzir uma outra coisa; pego aquilo e dou uma outra utilização.
Tudo isso depende desse movimento interno que é uma capacidade de dar significado às coisas, é um aspecto criativo. Na visão budista, isso é muito profundo; na visão cotidiana, a gente pensa: “bem, eu estou dando um novo significado.” Na visão budista, seria assim: não há nada que eu possa apontar em qualquer direção, que seja aquilo mesmo. Aquilo tem uma significação através desse processo do olhar. Não é assim: quando eu pego o lixo, eu dou novo significado.  Qualquer coisa que eu apenas olhar, eu já estou dando significado. Não existe nada a que eu não esteja dando um significado.
Essa contemplação é muito importante – precisaríamos, durante meses ou anos, ir olhando desse modo, até isso amadurecer dentro da gente. Eu preciso de um tempo para perceber que não há nada, em nenhuma direção, a que eu não esteja dando um significado. Depois de estabilizar isso, vem outra classe de ensinamento, porque isso também não resolve totalmente. Se eu quiser dirigir meu comportamento de certo modo, isso também não resolve, porque agora eu vejo como que eu dou significado, mas não entendo porque eu estou dando esse significado.

Liberdade e luminosidade

Aí partir daí, eu vou descobrir regiões internas que se abrem em várias linhas de investigação. Uma delas é “como se dá essa construção”? Isso vai me levar à noção de luminosidade da mente.
Outra linha é: existe a luminosidade da mente que constrói aquilo, mas “constrói por quê”? Surge então a noção de alayavijnana, que é um depósito de impressões. Em cada uma dessas áreas, tenho que penetrar, estudar e contemplar e podemos fazer isso tudo no cotidiano, sem problemas, ninguém precisa se tornar um isolado do mundo para fazer isso; aliás, o mundo é um bom lugar para isso.
E a indiferença? É a mesma coisa, eu construo com indiferença, é uma região de significado. A indiferença é uma construção ativa. A construção do lixo, por exemplo,  é uma expressão de indiferença. Nós temos expressões de indiferença em vários lugares – o lixo não é uma coisa que eu encontro, o lixo é uma coisa que eu construo. É bonito de ver a gênese do lixo nos presentes. Nessa época de Natal, quando vocês abrirem os presentes, abram devagar. Vejam como vocês estão construindo: um presente atraente, maravilhoso, logo vira um lixo, rapidamente! Tem uma caixa brilhando, com um laço: vocês puxam a ponta do laço e pronto! A fita já foi! A fita veio da China, andou de navio dentro de um container, chegou ao porto, foi transportada para lá, para cá, foi cortada e montada. Há também o papel: florestas foram derrubadas, troncos foram transportados em caminhões, aquilo foi retirado, foi moído, foi lavado com ácido, foi lavado com soda, foi retirada a celulose, apertada, folhas de papel foram cortadas e vendidas em estado bruto, depois foram trabalhadas, pintadas, lindo! E eu pego o papel e amasso.
A caixa de papelão, igual: pessoas trabalharam, mãos delicadas dobraram, montam aquela caixa linda e eu abro, olho o presente e penso: “ah, isso aqui eu não quero, já tenho!” Melhor, então, não amassar nada, guardar direitinho. Então, o lixo é construído – quando nós puxamos o nó, estamos gerando o lixo; puxamos o nó e arrumamos de novo, desapareceu o lixo. A nossa mente está construindo: o lixo é a indiferença ou um pouco de rejeição. Perdemos a ligação que tínhamos um minuto antes com aquele objeto. Mas o ponto aí já não é tanto o conteúdo do objeto.
Estamos olhando como esse processo funciona: existe uma dimensão luminosa que gera aquilo como uma coisa atraente, ou gera aquilo como lixo, e a gente pensa que o objeto é que é aquilo. É um processo de coemergência que estamos gerando e isso é muito importante porque revela uma dimensão que vai estar sempre presente. Eu estou olhando para todas as coisas e dando significado a elas; ao produzir as coisas, eu vejo que, independente do conteúdo final do que eu produzo, existe essa dimensão construtora, luminosa, que eu coloco em algum lugar para olhar melhor depois. Ela já pertence a uma natureza que nós não vamos nunca abandonar, ela é incessante.
Nós começamos a descobrir aquilo que é incessante; então, no meio da multiplicidade de objetos que sobem e descem, das paisagens que sobem e descem, existe uma ação incessante que é essa luminosidade. Junto com essa luminosidade, existe uma ação incessante que é a liberdade natural que temos diante das coisas, que eu posso, com a luminosidade, construir de um jeito ou de outro, mas eu só posso construir de um jeito ou de outro, porque tem uma liberdade.  Eu pego essa liberdade e luminosidade e coloco em um lugar para investigar melhor.

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