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Budismo, meditação e cultura de paz | Lama Padma Samten

É hora de mudar radicalmente a forma de educar nossos tulkus | Dzongsar Khyentse Rinpoche


A recente declaração de Jamgon Kongtrul Rinpoche IV sobre a desistência de seu papel traz uma mistura de muitos sentimentos que vêm de muitas direções.
De um lado, falando como um Jamyang Khyentse Tulku de conexão muito próxima com Jamgon Kongtrul por muitas vidas, minha preocupação é pelo Budadharma e, especialmente, pelo espírito Rimé (não sectário) que nossas supostas encarnações anteriores compartilharam. De outro lado, falando como ser humano, não podemos evitar fazer comparações. E agora me encontro comparando minha geração de tulkus com a atual.
Na minha época passamos por muitas dificuldades, comendo nada além de arroz e batatas por períodos de até um ano, viajando no transporte público mais barato da Índia, dormindo nas plataformas de embarque de trens, levando não mais de 10 rúpias nos bolsos por seis ou sete meses, passando o ano escolar inteiro com um único lápis e até mesmo dividindo nossos livros de estudo com outros 18 estudantes. Quando eu era criança, meus dois únicos brinquedos foram feitos à mão, e por mim.
Ainda pior, meu tutor me confinou em uma sala, mas não por semanas ou meses, e sim por um ano inteiro, de modo que até a ida ao banheiro se tornou uma excursão esperada. Não raro sofríamos abuso físico e verbal, que chegavam ao ponto em que nossas cabeças sangravam e em que éramos chicoteados com urtiga.
Não justifico ou romantizo nada disso. Mas por comparação, nossa atual geração de tulkus é absolutamente mimada e tem muita moleza. Ainda assim, contemplando um pouco mais, estes jovens tulkus têm seus desafios que de algumas formas são muito mais difíceis do que aqueles pelos quais passamos.
Atualmente o mundo é muito menor e mais aberto e, assim, as expectativas são muito maiores. Especialmente os tulkus que têm alguma história de linhagem por trás deles estão sob holofotes em todas direções. Isto é especialmente verdade quando se trata de tulkus colocados em tronos ainda enquanto crianças, recebendo títulos como “Sua Santidade”, e para os quais trompetes são tocados em todas as suas chegadas.
Todo esse excesso de publicidade e ainda mais se tornam um inevitável tiro pela culatra, elevando as expectativas e colocando estas crianças sob tremenda pressão. Um dos motivos chave pelo qual elas sempre estão sob os holofotes é simplesmente o fato de que as instituições atuais continuamente os colocam sob holofotes. Não há nenhum indicativo de que isso se pacificará um pouco dentro dos próximos anos.
Em meio a tamanha mudança, a decisão de Jamgon Kongtrul IV nos faz admitir e examinar algumas falhas fundamentais na forma como os tulkus são atualmente ensinados e criados. É um assunto muito difícil, mas deve ser tocado, que é a intenção deste artigo.
1.Por que nossos jovens tulkus precisam de treinamento:
Uma complicação fundamental vem dos alunos e discípulos não saberem equilibrar sua percepção pura destes jovens, que pode vir de sua prática genuína do Darma, com seus preconceitos culturais que frequentemente colocam a adulação e veneração acima da visão clara.
Como praticantes do Vajrayana, devemos ter uma percepção pura sobre nossos gurus. Para aqueles com a capacidade ou habilidade, tal percepção pura e devoção não deveriam mudar mesmo se a forma do guru mudasse. Na verdade, já vi excelentes praticantes olharem para o novo renascimento de seus respectivos gurus e, sem sombra de dúvida, verem seus gurus além de sua própria idade, tamanho, aparência ou nacionalidade de renascimento. Idealmente, é assim que praticantes deveriam fazer.
Claro que isto não significa que uma criança que é supostamente a encarnação de um grande mestre não tenha responsabilidade em aprender e ser treinada. Se, no melhor dos casos, a criança for uma encarnação excepcional e genuína manifestando-se como um continuum completo de sua vida passada, então é claro que qualquer treinamento ou educação são arbitrários. Do contrário, tais crianças precisam ser treinadas para assumirem responsabilidade por suas próprias ações.
Então, apesar dos discípulos do mestre anterior terem a percepção pura sobre a nova encarnação e praticarem seus deveres devocionais com todo o coração, o próprio tulku também precisa cumprir seu papel e responsabilidades de qualquer reencarnação que escolheu ser.
A realidade atual é que, mesmo que estas crianças sejam tulkus genuínos, muitos sequer aprenderam a assoar seus próprios narizes, o que dizer de manifestar de maneira pura todas as qualidades de suas encarnações anteriores, tal como onisciência.
Mover-se de uma vida para a próxima não é como mover-se de uma sala para outra. Mudanças drásticas ocorreram com o tempo, o que pede novas formas de treinamento se esperamos que os tulkus manifestem sua natureza verdadeira e qualidades. A veneração cega dos alunos, não raro proveniente de preconceitos culturais, nos engana sobre a necessidade de reavaliar o treinamento que estes jovens tulkus de fato precisam.
Na verdade, é válido notar que estes tulkus frequentemente não são nem mesmo reencarnações genuínas, mas recebem o título de “tulkus” enquanto crianças, com a aspiração de que isso gere benefício a elas e aos outros. Nestes casos, o termo “tulku” talvez seja apenas um título simbólico que certamente não se manifestará sem o treinamento adequado.
Em ambos os casos, os jovens tulkus são apenas crianças que precisam de treinamento, de educação adequada, e de iniciações e ensinamentos – e não apenas intelectualmente e academicamente. Precisamos torná-los confiantes e, ao mesmo tempo, humildes. Precisamos torná-los sublimes, e ao mesmo tempo humanos.
E acima de tudo, da mais suprema importância, precisamos que eles se tornem praticantes espirituais genuínos. Afinal, espera-se que eles se tornem líderes espirituais e detentores de linhagem, e não apenas líderes políticos ou de aldeias. E se eles não forem praticantes genuínos do Darma, que esperança teremos?
2.Falhas fundamentais na atual pedagogia:
Nossa pedagogia e forma de educar os tulkus não mudou com os tempos, e eu devo dizer que os tibetanos, em especial os que se encontram em monastérios, são extraordinariamente cabeças-duras e resistentes à mudança.
Ocorreram mudanças superficiais, mesmo porque professores hoje poderiam ser presos pela forma que éramos criados. Talvez hoje não tenhamos espancamentos, e talvez tenhamos até feriados de final de semana, muitas visitas de família, e muitos brinquedos. No entanto, isso não significa que nossa pedagogia mudou em sua essência, ou que se adaptou aos tempos.
Os tulkus atualmente são postos em tronos e cercados por um séquito que está, frequentemente, mais interessado em perpetuar a instituição do que criar os próximos líderes espirituais e das linhagens. Toda a parafernália de procissões, carpetes, brocados e taças de jade que o acompanham, podem tornar a aparência do tulku exótica e especial, mas não significam que ele foi treinado.
Toda essa badalação parece funcionar enquanto crianças, pois se dermos banho mesmo em uma criança de rua e a colocarmos em um assento com brocados, ela terá uma aparência imponente por pelo menos algumas horas. Se um tulku muito jovem apenas sorrir nesse tipo de atmosfera elevada, os devotos interpretarão isto como alguma forma de sinal extraordinário.
No entanto, essa substituição do treinamento verdadeiro pelo show se torna um problema sério com o tempo, pois ela exerce uma pressão sutil, porém intensa sobre os jovens tulkus com o tempo. Afinal, não há pressão maior e mais severa do que as expectativas alheias.
Então, quando centenas de olhares, para não dizer milhares, apontam e julgam tudo que os tulkus fazem, é possível que eles se isolem e se aprisionem em uma das zonas mais solitárias e alienadoras possíveis.
3. Foco inadequado na imagem e riqueza – uma fórmula para pressão:
O crescente materialismo e abundância do mundo encontrou seu caminho até nossos monastérios e instituições religiosas, onde muitos lamas elevados e, especialmente, detentores de linhagem atualmente levam uma vida tão extravagante e separada das realidades ordinárias que eles poderiam ser praticamente imperadores!
Isto pode ter funcionado – e não estou dizendo que realmente funcionou – no Tibete, onde poucas perguntas eram feitas e havia pouco ceticismo e grande devoção. No entanto, ao longo do tempo, ver os lamas mais elevados, que os novatos supostamente deveriam emular, vivendo vidas extravagantes de novos ricos, cheios de relógios de ouro e braceletes, transmitem sinais seriamente errôneos.
Primeiro e mais importante, este ‘modelo’ simplesmente não contribui em nada para encorajar as pessoas a praticarem o Darma, especialmente jovens monges recentemente ingressos em um monastério e cujo pensamento pode não ser muito sofisticado. Afinal, há uma razão para o Buda Shakyamuni ter aparecido descalço com uma tigela de mendicância – a austeridade, renúncia e simplicidade que isto simbolizava têm um significado real.
Não estou dizendo que os lamas principais de hoje deveriam repentinamente sair por aí com tigelas de mendicância. Mas é muito necessário que eles transmitam alguma forma de humildade despretensiosa e projetem uma imagem de vida simples.
Um bom exemplo de mudança necessária é o comportamento de muitos de nós lamas nos encontros anuais de inverno para orações e festivais sob a árvore Bodhi em Bodhgaya. Frequentemente eu imagino o que outros budistas, como os praticantes Theravada, pensam sobre nossos lamas sentando em tronos que podem ser mesmo mais elevados que algumas das estátuas do Buda.
É claro que o caminho do tantra nos treina para perceber nosso guru como a corporificação de todos os budas. Mas em lugares como Bodhgaya, onde as estátuas e símbolos são profundamente significativos para o público em geral e para todos os budistas, não há ninguém acima do Buda. Assim, Bodhgaya seria um bom lugar para nossos lamas começarem a praticar simplicidade e humildade!
Acredito que ver líderes monásticos ou de linhagem prósperos possa impressionar alguns tibetanos nômades ou alunos chineses muito entusiastas. Mas, subconscientemente ou conscientemente, isto realmente estabelece o mau hábito do modelo de que um lama deve possuir riquezas ou status.
Tal mensagem está fundamentalmente errada a partir de uma perspectiva budista básica. Afinal, o Buda é de longe a pessoa mais importante na terra para os budistas. E o ato mais importante do Buda foi a conquista da iluminação depois de derrotar os maras. Esse grande evento se deu sobre uma simples almofada de grama e de folhas bodhi, sem tronos, brocados ou quaisquer roupagens especiais como estas.
Em resumo, além de inadvertidamente transformar nossos jovens tulkus em moleques mimados, o foco atual em riquezas e privilégio como parte do treinamento do tulku é anátema para a pedagogia budista e seus valores centrais.
4.A prisão do privilégio:
De propósito ou não, hoje em dia os monastérios com frequência parecem encontrar e entronar um tulku que venha de família rica ou poderosa. Qualquer que seja a intenção, o tulku ainda hoje é usado como a atração principal do monastério, já que muito mais gente visita um monastério para ver um tulku ou lama elevado do que o próprio monastério. Isso é especialmente verdade se o nome do tulku for precedido por “Sua Santidade” ou “Sua Eminência”, junto com uma exótica descrição de como o tulku é a reencarnação de um dos maiores mestres do passado.
Incidentalmente, termos como “Sua Santidade” não são nem budistas, mas emprestados diretamente do cristianismo. Assim, essa obsessão dos lamas tibetanos com tais títulos cristãos é realmente incompreensível, e francamente vergonhosa quando eles põem “Sua Santidade” antes do nome de uma criança. No melhor cenário, os cristãos devem rir de nós, especialmente quando a idade média em que o título papal de “Sua Santidade” é concedido ao bispo escolhido gira em torno dos 60 anos.
Além disso, por esses jovens lamas reencarnados serem um grande patrimônio para os monastérios, temos visto, de modo previsível, uma corrida inapropriada para encontrar e entronar tulkus, que parecem ser muito mais numerosos hoje do que há três ou quatro décadas atrás.
Na verdade, logo depois da entronação e toda a badalação associada, não é surpresa encontrar muitos desses tulkus, frequentemente muito jovens, sendo incumbidos de algum tipo de projeto ou operação – seja para salvar o ambiente ou para construir uma stupa, shedra, ou estátua gigante de algum bodisatva. É quase como se, para ser uma bom lama, ele tenha que ter um projeto.
Mas sob um olhar mais minucioso, essas atividades são quase sempre ferramentas para gerar rendimentos, e nós sabemos quão pobre o sistema tibetano é, em se tratando da transparência e do bom uso das doações públicas.
O encontro das tradições culturais do leste e sudeste asiáticos de devoção cega e oferendas extravagantes com um sistema tibetano feudal de tulkus onde não há verificação nem balanços, também tem impedido o desenvolvimento de um sistema moderno de treinamento dos tulkus. Esses jovens garotos acabam esquecendo que dinheiro não dá em árvores, e eles não têm ideia de como as pessoas suaram e sangraram para produzir as oferendas agora amontoadas sobre eles.
Com tanta fortuna, privilégio e adoração como prêmio, não é de se surpreender que encontremos agora tantos pais ansiosos por ter filhos entronados como um certo lama elevado ou outro. Eles mal sabem o quanto seus filhos vão sofrer.
Ser um tulku encarnado é realmente como ser posto em uma das mais inimagináveis prisões. Você coloca a criança na situação mais confortável, com os mais brilhantes brocados, alimenta-a com sorvete e lhe dá brinquedos, presentes e respeito. Ao mesmo tempo você sistematicamente a afasta do desenvolvimento como um ser humano adequado que consiga lidar com o mundo humano.
A dor real virá depois, quando esses jovens tulkus crescerem, com os hormônios fora de controle e sem saber nada das realidades mundanas, sentindo-se totalmente inúteis. Eles não saberão nem mesmo como interagir com o mundo das maneiras mais básicas, e muito menos sobre como ser um líder. Como um tulku como esse pode algum dia ser um guia espiritual para os alunos?
5. Preparando o terreno para a hipocrisia:
Tentar manter imagens externas de privilégio e respeito sob o intenso holofote público que constantemente recai sobre nossos jovens tulkus inevitavelmente cria hipocrisia.
Por exemplo, jovens tulkus ouvem que precisam ser puros e monges. Mas medir a pureza deles desde muito cedo com base em quem é celibatário ou não cria uma pressão enorme e pode ser perigoso, porque esses padrões externos são realmente incertos. Afinal, quando nós trabalhamos com os hormônios das pessoas não temos de fato muito controle.
Mesmo de acordo com o vinaya não é permitido impor votos de celibato a alguém contra sua própria vontade ou como resultado de pressões sociais ou de colegas, como tão frequentemente acontece com jovens monges nos dias atuais. Vale lembrar que mesmo o Buda Sakyamuni tornou-se um renunciante por escolha só após ser casado e ter tido um filho.
Essa pressão social se tornou tão grande com o tempo que, quando um dos Khamtrul Rinpoches anteriores decidiu abandonar o celibato, um de seus monges quis assassiná-lo.
Não podemos negar, é claro, que alguns dos jovens monges pressionados a serem celibatários desde muito cedo acabaram se tornando monges muito bons. Mas, com muito maior frequência, impor o celibato diante da intensa pressão social e cyber-entretenimento de hoje faz com que muitos de nossos jovens tulkus se tornem hipócritas forçados a esconder suas “falhas”.
Essa cultura de fingimento é reforçada à medida que os tulkus percebem que seus colegas, e algumas vezes seus superiores, também estão praticando hipocrisia. Uma pedagogia que encoraja tal hipocrisia está enormemente equivocada e pode produzir comportamentos totalmente aberrantes.
6. Pedagogia para o mundo de hoje e para o futuro:
Por outro lado, eu também tenho empatia genuína pelos labrangs, pelos monges e outros responsáveis por treinar nossos jovens lamas encarnados. Eles geralmente têm muito boas intenções, mas apenas não sabem como criar uma criança no mundo de hoje e simplesmente não se adaptaram às condições atuais.
Além de apenas treinamento acadêmico, nossos jovens tulkus precisam aprender como alinhar coisas que precisam ser alinhadas, como compartilhar coisas que precisam ser compartilhadas e outros elementos básicos de decência humana e contrato social. Quando lhes é servido e ofertado de tudo, muitos desses tulkus nunca aprendem nem mesmo o simples conhecimento humano de compartilhar, e acabam mal preparados para viver nesse mundo. Eles não precisam só de treinamento de liderança, mas também de um curso básico de relacões humanas.
Tutores e cuidadores precisam saber que, devido à frustração, alguns desses jovens tulkus até mesmo se queimaram ou se cortaram com lâminas – como outros adolescentes perturbados também já fizeram. Tais comportamentos nos alertam sobre o quanto esta era é perigosa e precária.
Apenas criar um garoto comum, especialmente um adolescente nos dias atuais é extraordinariamente desafiador, como todos os pais sabem. Muito mais difícil, então, é criar uma criança ou adolescente do qual se espera que seja muito mais um líder do que apenas chefe-de-família ou da linhagem familiar. Porém, as pessoas que lidam com nossos tulkus têm quase nenhum conhecimento ou experiência no treinamento humano básico necessário para se criar crianças no mundo de hoje.
Infelizmente, os treinadores dos tulkus frequentemente se preocupam mais com como essas crianças, muitas vezes não mais que bebês, irão se comportar e serão tratadas em público do que com eles como simples seres humanos. Sua constante preocupação sobre quem ganha o assento mais elevado e o melhor tratamento, sobre quantos carros farão a escolta dos tulkus e sobre quantas pessoas aparecerão no aeroporto para recebê-los mudou fundamentalmente as mentes desses tulkus; e não para melhor.
Podemos ver essa mudança de atitude hoje no número crescente de tulkus “duplos” e nas múltiplas reinvidicações de diferentes aspirantes de ser a reencarnação do mesmo mestre do passado. O que nós ainda estamos para testemunhar é mesmo um tulku dizendo: “Ó não, eu não sou o correto; o outro lama que é a encarnação correta.” Em vez disso, eles se agarram aos seus títulos com tanto apego e fixação, isso dificilmente pode ser chamado de uma característica “budista” valorosa.
E vemos uma mudança de atitude problemática parecida no que se refere aos próprios ensinamentos. Nos meus tempos, nós buscávamos ativamente professores e ensinamentos, viajando longamente, mesmo com meios de transporte quase inexistentes. Eu me lembro bem de uma vez quando andei de Gorakpur até Lumbini, e então peguei uma carona de trator até Biratnagar apenas para receber um ensinamento do Karmapa no Nepal. De alguma maneira, os tutores de minha geração incutiram em nós aquela paixão e força de vontade para fazer sacrifícios por uma palavra dos ensinamentos preciosos.
Hoje podemos quase tirar da cabeça a ideia de que nossos jovens tulkus irão buscar avidamente professores e ensinamentos. Em vez disso, temos de nos dar por satisfeitos se eles ao menos expressarem algum interesse por um ensinamento e convocarem um professor para vir até eles. Na tradição budista, essa mudança de atitude para com os ensinamentos está profundamente errada.
Quantos já perceberam, por exemplo, que as fotos dos jovens tulkus de hoje dificilmente os mostram sentando-se abaixo de seus professores e oferecendo veneração, e o que dizer então de se prostrar diante deles? Porém, tal visão seria tão útil como um exemplo. É compreensível colocar uma criança sobre um trono no dia de sua entronação, mas é realmente pouco sábio seguir colocando-a no trono dali em diante até a puberdade.
Os tibetanos acreditam em geral que criar um tulku depende apenas dele ter um tutor, receber muitos ensinamentos, memorizar pilhas de textos e aprender rituais. O que eles não percebem, apesar de ser muito fundamental e simples, é que o treinamento mais amplo vem do ambiente no qual o tulku é criado, e de modo mais crítico, de como o tulku é criado.
7.Barreiras sociais e culturais para uma pedagogia genuína de treinamento de tulkus:
Reforço que não quero colocar a responsabilidade completa pelas deficiências dos métodos atuais na criação dos tulkus sobre os labrangs e monges diretamente incumbidos desse treinamento. Na verdade, uma boa parte da situação pode ser atribuída a sociedades tradicionais como a tibetana e a butanesa, nas quais há uma mistura complexa de devoção sincera e bagagem cultural fora de moda.
Eu frequentemente imagino como alguns desses lamas elevados devem sonhar em andar sozinhos carregando suas próprias mochilas, beber chá em uma casa chai ou andar de riquixá. É apenas o seu séquito zeloso que não os deixa fazer isso, porque há uma tremenda pressão das nossas sociedades tradicionais para fazer esses lamas agirem de certas maneiras, e para os devotos cercá-los com assistentes, servos, brocados e toda sorte de emblemas de status, antigos e modernos.
Há até um ditado do leste tibetano, usado para me repreender quando eu estava crescendo, que diz que os lamas deveriam ser como estátuas de ouro – significando que deveríamos sentar imóveis, não olhar nem para a direita nem para a esquerda e agir mais como um objeto precioso do que como um ser humano. Há outro ditado que diz que um leão das neves deve permanecer como um leão das neves nas altas montanhas, porque se descer será confundido com um cachorro.
Esses dois ditados realmente dizem tudo, revelando não só como os lamas são ativamente desencorajados de misturar-se com pessoas comuns, mas também como está obsoleta nossa pedagogia tradicional para criar lamas para uma sociedade contemporânea.
A dura realidade é que uma estátua de ouro não pode nem mesmo alimentar-se. Ela pertence a um dono que tem o poder de vendê-la, ou pelo menos vender ingressos para aqueles que desejem vê-la. E lamas, como o leão das neves, virtualmente não sabem nada sobre o que está acontecendo no mundo comum. Portanto, como esses lamas podem ensinar a verdade do sofrimento, quando são constantemente protegidos dele e quando o único sofrimento que conhecem é aquele lido nos textos?
Na verdade, essa é exatamente uma grande parte do problema – a pedagogia atual continua majoritariamente intelectual, divorciada do mundo e incapaz de tornar nossos tulkus praticantes genuínos do Darma. Sim, esses jovens tulkus podem entoar mantras, acordar cedo e até fazer sadanas, pujas e receber ordenação.
Mas, como Atisha disse, praticantes genuínos do Darma devem fundamentalmente aprender a não estar interessados na vida mundana ou na vida como um todo. Para começar, isso significa não se importar com a altura dos seus tronos, número de estudantes, seus títulos ou a marca de seus relógios.
8.Preso no túnel do tempo:
Em suma, a tradição tibetana atual está treinando tulkus em direção exatamente oposta da verdadeira liderança. Isso não é negar os méritos do sistema tradicional, que no passado produziu uma certa elegância acompanhada de erudição genuína e disciplina.
Mas uma análise mais minuciosa revela um inaceitável compromisso ao não preparar nossos tulkus para operar nesse mundo, e muito menos num mundo totalmente diferente no qual viveremos daqui a 20 anos.
Nosso sistema de treinamento de tulkus continua paralisado nos anos 1930 ou 1940, nunca reconhecendo que agora é 2016, e certamente não preparando nossos jovens tulkus para o mundo de 2026 quando alcançarão a maturidade e supostamente assumirão o cargo de liderança espiritual. O que estamos fazendo para preparar nossos tulkus para um futuro no qual a Apple produzirá um chip que os tulkus poderão usar para conectar-se à banda larga e explorar o mundo do sexo, drogas e dinheiro?
Não é surpresa que quando nossos jovens tulkus crescem e atingem seus 20 anos, frequentemente eles se tornaram completos estranhos, não sabendo nada sobre o mundo e com seus labrangs, funcionários e parentes próximos parecendo ditar cada movimento de suas vidas. O problema é mais grave quando esses mesmos membros do labrang são corruptos e dados ao nepotismo, como muitas vezes acontece.
Como resultado, o cenário que os recém-chegados no budismo tibetano encontram pode ser enormemente confuso, com lamas supostamente onicientes incapazes até mesmo de controlar seus assistentes mais próximos. Os tibetanos desculparão tal comportamento descaradamente estranho dizendo que não é culpa do lama – o lama é sempre ótimo – mas seu assistente ou consorte são o problema.
Mas de alguma maneira isso não desaparece diante da crua realidade de que nossos tulkus são raramente praticantes genuínos do Darma, e se encontram amplamente desconectados e disfuncionais nas suas próprias vidas, e muitos menos são capazes de oferecer liderança genuína para os alunos e discípulos. Eu só posso rezar para que seus comportamentos estranhos tenham algum benefício invisível que não pode ser compreendido por seres ordinários como eu.
9.Aspiração para nossos futuros tulkus:
E assim, por todas essas razões que mostram o sério fracasso em adaptar os métodos pedagógicos tradicionais para tulkus no mundo de hoje, devo dizer que pessoalmente não tenho julgamento algum sobre o que Jamgon Kongtrul está fazendo. Apesar de não ter informações diretas dele, tenho ouvido muitas boas coisas a seu respeito, e por muitas razões tenho a profunda aspiração e esperança de que ele verdadeiramente brilhe.
Em um nível humano básico, eu realmente não me importo se Jamgon Kongtrul IV quer se tornar um médico ou não. Na verdade isto pode se mostrar muito bom e inspirador. Por mim ele poderia ser um relojoeiro, assim como alguns de nossos maiores mestres do passado incluíam um fabricante de flechas, um extrator de óleo de gergelim, um fazendeiro, um barbeiro, e mesmo uma prostituta. Em comparação, ser um médico parece muito mais respeitável!
Na verdade a escolha de Jamgon Kongtrul pode ser um excelente antídoto para uma falha fundamental na situação monástica do budismo tibetano, que é a de tornar o próprio budismo uma profissão desenhada para assegurar a sobrevivência de monges, monastérios e professores do Darma. Enquanto esta ‘profissão’ budista tem suas raízes históricas na necessidade compreensível de sobrevivência monástica, ela leva hoje a muita confusão, e pode não estar ajudando na propagação mais ampla do Budadarma nesses tempos atuais.
Por esta razão, eu também tenho aconselhado meus amigos, colegas e camaradas Rinpoches repetidamente que, ao ensinarem aqueles que não são tibetanos, eles não deveriam encorajar o uso de mantos tibetanos ou qualquer tipo de badulaque budista. Em contraste, ver um praticante budista num uniforme de exército, terno e gravata, ou outra roupa normal, transmite a mensagem de que o budismo pode ser praticado por qualquer um.
No momento em que um lama impõe algum tipo de manto especial, que é um hábito profundamente arraigado, imediatamente isso exclui os outros e cria uma atmosfera cult. Em minha visão, uma das razões principais que levam o número de budistas em todo o mundo a diminuir, enquanto outras religiões como o islamismo estão crescendo, é o nosso hábito de exclusivismo introvertido..
Em resumo, a escolha de Jamgon Kongtrul de ser um médico pode se mostrar ter sido perfeita, e pode genuinamente servir o Budadarma ao longo do tempo. Mas o que eu espero, desejo e rezo por isso, é que, seja de que forma for, Jamgon Kongtrul IV trabalhe com todo o coração pelo Dharma; não apenas para uma linhagem, mas para todas as linhagens – como sua encarnação anterior fez.

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