Nós não somos as identidades, as bolhas de realidade que nos ocupam e nos mantém focados num certo sentido desperdiçando tempo.
1. “Lembrar que logo estarei morto é a coisa mais importante que encontrei para ajudar-me a fazer as grandes escolhas na vida, porque quase tudo – todas as expectativas externas, todo o orgulho, todo o medo de constrangimento ou fracasso – essas coisas simplesmente desaparecem em face da morte, deixando apenas aquilo que é realmente importante…Lembrar que você vai morrer é a melhor maneira que conheço de evitar a armadilha de pensar que você tem algo a perder. Você já está nu. Não há motivo para não seguir o seu coração.”
A frase é de Steve Jobs, que teria quase se transformado em um monge budista na juventude, durante palestra a estudantes em Stanford. O senhor acha que essa noção da impermanência nos ajuda a fazer melhores escolhas na vida prática?
Lama Samten: A gente precisaria olhar o que, enfim, é a morte. Porque na visão budista a morte é alguma coisa muito profunda. A morte de fato não existe. A morte é a morte de um conjunto de identidades ilusórias. Então, quando nós lidamos com a morte, a gente também sempre lembra da questão da transmigração. Durante a vida, nós estamos constantemente morrendo na forma de uma identidade e ressurgindo na forma de outras identidades. Então, tem essa constante transmigração. O Buda vai lembrar esse tema da transmigração constantemente. De um modo geral, nós estamos sempre em algum lugar aspirando ir para um outro lugar. Isso é transmigração. Então, nós estamos sempre com a questão da morte e da impermanência, assim, no nosso cotidiano. Essa noção é importante, porque, enfim, ela vai nos dizer que nós não somos o que a gente pensa que é. Nós não somos essas identidades, essas bolhas de realidade que nos ocupam e nos mantém focados num certo sentido desperdiçando tempo. A impermanência dá esse sentido.
Também o sonho é muito útil como um processo pelo qual nós aprofundamos a noção da realidade, a noção da impermanência e também a noção da morte. Porque quando o sonho vem, nós também perdemos todas as propriedades. Dentro de um sonho, a gente não carrega o automóvel, não carrega a casa, não carrega nada. Muitas vezes, a gente não carrega nem os nossos entes mais queridos, os mais próximos. Eles desaparecem de dentro dos nossos sonhos e nós estamos sozinhos em algum lugar. Então, isso nos traz essa perspectiva de que nós vivemos, em verdade, bolhas de realidade, e as identidades, as propriedades e as várias coisas que a gente tem dentro dessas bolhas desaparecem com a maior facilidade. Então, no budismo, a morte é um aspecto concreto disso. Para a maior parte das pessoas que não é capaz de pensar de uma forma muito abstrata, a morte dá um sentido concreto dessa impermanência e dá a exata medida do que significam as nossas identidades, as nossas posses, os nossos apegos, as nossas fixações todas.
O Dalai Lama aconselha a “não proscratinar a prática espiritual com a ilusão da permanência. Estimulem habilmente as outras pessoas a pensarem na morte delas.” Que sentido há em pensar na morte do ponto de vista espiritual?
Lama Samten: Trata-se do que eu estava mencionando anteriormente. A morte nos ajuda a olhar de forma profunda a vida. Essa vida que está além mesmo da morte. Esse é o sentido mais importante: podemos encontrar dentro da morte aquilo que não morre, dentro da transmigração aquilo que não é afetado pelo desaparecimento das bolhas. Quando nós estamos em diferentes bolhas de realidade, nós podemos ter as crises das identidades que não são mais viáveis, das bolhas que se dissolvem. Então, nesse momento, ficará claro que a bolha se dissolveu, a nossa identidade se dissolveu, mas alguma coisa não se dissolveu. Então, o ponto mais importante no budismo é aquilo que se chama natureza primordial, aquilo que não é construído, não é artificial, mas serve de base para todas as construções. Assim, ainda que as várias bolhas de realidade surjam, as várias identidades surjam dentro das bolhas, elas não são permanentes, não são reais. Mas há algo que é real e se mantém. Esse algo não é propriamente um objeto, não é um algo. É alguma coisa misteriosa que nós não conseguimos localizar como um conjunto de características. Então, esse é o aspecto da vacuidade. A vacuidade plena. Assim, a morte nos ajuda a sensibilizar nessa direção. As mortes acontecem durante a vida. Mas a morte mesmo, ou seja, o desaparecimento completo se dá como a água retornando ao mar: não há um desaparecimento. Tem uma imagem muito bonita naquele filme Samsara, que tem essa pergunta: como nós podemos fazer para que uma gota de água jamais desapareça? E a resposta é: fazendo ela retornar ao mar.
Quando ela se funde com o mar ela não desaparece mais. Então, na visão budista essa é a grande morte. O desaparecimento da ilusão dentro do mar da existência que não flutua.
E por que um retiro dedicado ao tema da morte?
Lama Samten: Justamente por isso. Porque o tema da morte é um tema sensível para muitas pessoas. Então, a gente aproveita essa sensibilidade para ajudar as pessoas a focarem esses temas que ultrapassam a própria questão da morte.
Do ponto de vista budista, o que acontece na hora da morte?
Lama Samten: Na hora da morte, acontecem coisas a nível de corpo, que é o nível grosseiro, coisas a nível de energia e coisas a nível de mente. Então, nós contemplamos essas várias coisas, mas elas não acontecem apenas no momento da morte. Elas acontecem durante a vida também. As coisas acontecem a nível de corpo, a nível de energia e a nível de mente o tempo todo. Quando nós vamos descrever a morte, a gente também vai descrever o que acontece a nível de mente, a nível de corpo e a nível de energia. Nós vamos perceber que o aspecto de corpo toma um rumo que não tem retorno. Mas os aspectos a nível de energia e mente seguem. Então, nós contemplamos isso, como que isso acontece. Contemplamos como nós podemos ficar conscientes dos aspectos de energia e dos aspectos de mente mesmo quando os aspectos de corpo entram em colapso. De modo geral, durante a vida, os aspectos de mente e de energia estão na dependência dos sentidos físicos e da operação do corpo. Quando o corpo entra em colapso, então, os aspectos de energia e de mente se aproximam mais das manifestações que surgem também durante o sonho, porque no sonho a operação dos sentidos físicos não está se mantendo mais. Nós não estamos operando a mente a partir do contato com os sentidos físicos. É uma situação semelhante ao que acontece após a morte, em que a mente e a energia operam, mas o foco não está mais em olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Ele está num processo abstrato. Então, no momento da morte, nós fazemos essa transição também: do aspecto concreto, em que nós utilizamos a mente focada nos sentidos físicos, para uma experiência abstrata semelhante a um sonho.
Quais os conselhos do Lama para a hora da morte? Como enfrentar a hora da morte?
Lama Samten: Isso vai depender da pessoa. Um exemplo: quando nós nos aproximamos da hora da morte é muito útil que a gente pacifique todas as lembranças, positivas ou negativas. Então, que a gente lembre das pessoas com quem a gente teve dificuldade e as perdoe. Que a gente também se perdoe das várias coisas que a gente não fez de modo apropriado. Perdoar significa sorrir para aquilo, ver que a gente estava envolvido em bolhas de realidade, envolvido em disputas sem sentido e que a gente está se livrando dessas aflições, e que a gente se livra, porque a gente percebe que aquilo era um engano. É como se nós estivéssemos olhando a nossa vida como nós olhamos as crianças. As crianças estão envolvidas em disputas, em coisas intensas pra cá e pra lá. Mas aquilo são movimentos. São movimentos que não têm um sentido mais profundo. Então, desse modo a gente se livra tanto das coisas que são aflitivas pra nós como passagens negativas da nossa própria vida, como também das negatividades que a gente tenha causado para os outros. Então, é muito importante esse perdão. Perdão do mundo, perdão das pessoas e o perdão com respeito a nós próprios. Assim, nós nos sentimos livres pra que a mente, as emoções, as energias se desloquem numa direção mais favorável.
Um segundo ponto muito importante é que a gente foque a nossa mente numa direção de refúgio, em alguma coisa que a gente tenha confiança, tenha estabilidade. No caso dos budistas, a gente foca no Buda, no Darma e na Sanga. Então, se a gente tiver essa capacidade, melhor. Se a gente tiver uma abordagem Vajrayana, a gente foca na mandala também. A gente toma refúgio na mandala. Buda, Darma, Sanga e o mundo, inseparáveis. E a gente tenta manter a nossa mente dentro de uma mandala de lucidez. Esse é o processo.
Se a pessoa tiver contato com outras tradições, as outras tradições têm refúgios. Por exemplo, se for a morte de um cristão, a gente perguntaria: você acha que nesse momento de aflição e de desespero na proximidade da morte Jesus Cristo o abandonaria? De um modo geral, os cristãos vão entender que Jesus Cristo estará junto, que não os abandonará nesse momento. Então a gente diz: foque a mente em Jesus Cristo e se mantenha em sua conexão com ele. Em outras tradições, também tem seres, tem refúgios e a gente pode fazer a mesma pergunta: você acredita que a sua fonte de refúgio, a sua visão de Deus, o Deus na forma como você se relaciona vai lhe faltar nesse momento?
De um modo geral as pessoas têm a fé que isso não vai acontecer, que elas estão protegidas. Então, é muito importante manter esse olhar elevado, voltado para alguma coisa muito profunda. É inútil imaginar que a nossa mente possa ser administrada através da vontade ou da disciplina. É um momento em que as dimensões da nossa prática e dos nossos carmas assumem o controle do mesmo modo que eles assumiram durante a vida. Durante a vida a nossa capacidade de disciplina teve um êxito muito limitado. Então, no período da morte, ela também vai ter um êxito muito limitado. Na visão budista, nós precisamos é repousar na mandala.
Como admitiu Steve Jobs, ninguém quer morrer, mas esse é um fato inevitável. O senhor aconselha conversarmos sobre a morte, sobre o momento da morte?
Lama Samten: O meu mestre, Chagdud Rinpoche, escreveu um livro sobre isso, sobre como a gente pode aproveitar a visão de uma futura morte, imaginá-la de uma forma muito viva e com isso ganhar uma maturidade através de visualizações do próprio processo em que o corpo vai endurecendo, a respiração vai ficando difícil, e assim a gente tem uma experiência viva da morte. Sem precisar morrer, naturalmente. E a partir disso essa consciência passa a permear a nossa vida, os nossos movimentos, as nossas imaginações, as nossas relações também.
O senhor acha que a mídia deveria abordar este tema? Sob que enfoque?
Lama Samten: Eu acho que a mídia deveria tratar a morte de uma forma natural. A morte permeia a mídia de todo modo, porque a mídia está noticiando sobre isso o tempo todo. E entre as coisas mais perturbadoras está justamente as notícias sobre as mortes terríveis, sobre as mortes sob tortura, mortes sob circunstâncias muito aflitivas.
Eu acho que a mídia não deveria abordar a morte na forma tétrica, na forma assustadora. Seria melhor se ela pudesse abordar dentro de uma perspectiva da naturalidade da morte, da naturalidade da permanência além de vida e morte. A gente também não pode exigir isso da mídia. A mídia é uma média das opiniões, das visões das pessoas.
Hoje estamos vendo mortes horríveis, sendo conduzidas justamente para provocar um impacto sobre as pessoas que têm medo da morte. Então, nós assistimos esses vídeos onde as pessoas são mortas ao vivo de uma forma dolorida. Mas se vocês olharem, enfim, todas as pessoas vão morrer de algum jeito. E a morte não é uma morte real. Ela é uma separação do corpo simplesmente. Os aspectos de energia e de mente seguem. Então, uma vez que a morte é inevitável, se a mídia conseguisse tratar disso com um nível de lucidez, seria uma boa coisa.
A prática da meditação prepara para morte? Como?
Lama Samten: Ela prepara porque a prática de meditação é uma prática além de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. A gente acessa esse espaço de energia, esse espaço de mente que está além da necessidade dos contatos com o mundo. Então, a mente na meditação é uma mente livre dos contatos com o mundo. Isso não quer dizer que durante a meditação a pessoa não tenha o contato com os sentidos físicos, mas a pessoa não deveria ser movida por eles e pelos impulsos que brotam deles. Isso mesmo seria a meditação. Essa capacidade de independência com relação aos sentidos físicos. Então, a morte é acessada através da meditação. A meditação é um bardo. Do mesmo modo que existe o bardo do sonho, existe o bardo da meditação. O bardo da meditação nos retira do bardo da vida propriamente. É uma experiência consciente, livre da experiência comum da vida.
Qual a visão budista sobre a vida pós-morte? O que acontece na morte? Qual a visão budista sobre a reeencarnação?
Lama Samten: É melhor a gente pensar que isso é semelhante às múltiplas vidas dentro de uma mesma vida num mesmo corpo. É melhor pensar assim. Aí a gente entende melhor a questão da transmigração. É muito comum que as pessoas nasçam num lugar, vivam num outro lugar, depois se transfiram para um outro lugar. E vão constituindo família, depois eventualmente outra família e vão trocando de emprego e vão transmigrando dentro do mundo. Então, isso é a visão budista da reencarnação. Nós vamos mudando de ambientes e nos tornando outras pessoas ao longo de uma mesma vida. Quando surge a dissolução do corpo, nós vamos também transmigrar. Nós vamos buscar outros corpos, outros lugares de nascimento, outras possibilidades conduzidas por uma mente que muitas vezes não é consciente. É uma base cármica que produz impulsos. Então, durante a vida, é bom que a gente tenha compreensão e clareza sobre esse tema.
Como devemos tratar a questão da morte com doentes e idosos?
Lama Samten: Eu acho que nós deveríamos tratar de uma forma muito honesta, porque os doentes e os idosos têm a consciência da morte. Muitas vezes a gente não consegue tratar disso. Eles tentam escamotear a questão, porque eles não encontram ninguém com coragem para tratar disso. Mas quando vem alguém que fala para eles sobre a questão da morte, ou lhes ajuda a expressar suas visões, eles se sentem muito aliviados e muito felizes. É melhor conversar com as pessoas sobre isso. Aí eles têm alguém com quem compartilhar. De um modo geral, os doentes e os idosos não querem falar muito para não perturbar as pessoas. Porém, eles se beneficiam muito quando a gente fala com eles sobre isso.
Entrevista concedida por Lama Samten a uma assessoria de imprensa de São Paulo, por ocasião da divulgação do retiro Conselhos sobre a Morte, em outubro de 2014, em Viamão. Transcrição: Jader Silvestre