A questão da estabilidade da mente
Quando nós examinamos o ensinamento do Buda, percebemos que ele fala sobre paz, paciência, serenidade, a kshanti paramita. Quando examinamos a estrutura do pensamento do Buda, percebemos que esse passo diz respeito a liberar o praticante do domínio da cobra e do galo. A cobra é a raiva, a aversão, o ódio, o medo, e o galo é a intranqüilidade, a agitação, a atividade incessante, a aflição. Estes são os dois elementos que perturbam a serenidade do praticante. Se estes elementos simbolizados pela cobra e pelo galo estiverem presentes, inevitavelmente a paz estará perdida e a prática de meditação formal será inócua.
Quando perdemos a serenidade isso não se mostra apenas no cotidiano. Mesmo que sentemos para praticar meditação nossa mente vai girar. Experimentaremos aflição ainda que sentados na postura formal e em silêncio. Sem a serenidade, imagens surgem em nossa mente, temos impulsos de ação, surgem muitos diferentes pensamentos e prioridades.
Surgindo estas prioridades, o praticante pode cogitar que lhe falta algum ensinamento especial para que seja capaz de “controlar” sua mente. Com essa expectativa o praticante pode até desanimar, imaginar que sua prática, sem falar na vida cotidiana, estão perdidas e que nunca vencerá esse obstáculo. Há praticantes que sustentam seu esforço por longos anos, sem progresso visível, obstaculizados que estão por fatores sutis.
Outros praticantes podem substituir a agitação e a raiva pela sonolência e indolência. Em lugar da agitação, surge outro estado que também é simbolizado pela ação do galo, mas que nesse caso conecta-se com a qualidade da obtusidade mental. Dominados pela raiva, pela agitação, ou ainda pela depressão, os praticantes podem desenvolver esperança numa direção errada — podem realmente imaginar que falta alguma técnica específica em sua meditação. Podem vir a ansiar por alguma habilidade especial que aparentemente ainda não esteja presente e que seja capaz de dissipar estes obstáculos durante a própria prática formal.
Serenidade e meditação
É necessário desenvolver uma perspectiva abrangente dos ensinamentos. Quando Buda dá instruções sobre meditação formal, em geral estes ensinamentos correspondem à sexta etapa do nobre caminho óctuplo. Esta etapa é precedida pelos ensinamentos que dizem respeito à prática da serenidade e da paciência, que por si só são parte das instruções do Buda com relação a forma de viver e praticar durante a própria vida cotidiana, a quinta etapa. Se não houver uma compreensão adequada deste item de serenidade e paciência, será muito difícil progredir na meditação formal sentada. Portanto, segundo o ensinamento do Buda, fica claro que esta etapa, a que nos capacita a vencer a agitação da mente durante a meditação é, na verdade, uma atitude básica. É para ser praticada na própria vida cotidiana, antes mesmo de sentar na nobre postura silenciosa de sete pontos ensinada pelo Buda. Em verdade é um pré-requisito para ela.
Quando o Buda fala sobre esta etapa da paciência e da serenidade no “Sutra do Diamante”, ele enfoca o assunto não no sentido de como a paciência é gerada, mas no reconhecimento de que nossa condição básica é de paciência e serenidade. Ou seja a serenidade e a paciência são vistas como atributos naturais da mente e não algo construído por hábito, através de um treinamento, por exemplo.
Esta condição básica é perdida pela ação dos dois animais, a cobra e o galo, que, por sua vez, são potencializados por um terceiro animal, o javali. Este simboliza nossas fixações, nosso auto-interesse.
Portanto, quando procuramos a serenidade devemos pensar em como remover estas fixações, este é o ponto importante. A mente oscilando durante a prática é um obstáculo básico que está ligado a ação do javali e, por conseqüência, dos outros dois animais. Ele se mostra como nossas fixações, e dessa forma surge dentro de nossa meditação como flutuação da mente, das energias e emoções na forma do galo e da cobra.
Operando segundo fixações, o javali se estrutura na forma de guardiões de nossas atividades cotidianas. Devido a estas fixações surgem ganhos e perdas potenciais. Então criamos em nossa própria mente como que servos, guardas, assessores: partes nossas que colocamos a vigiar todas estas atividades e fixações que temos. Nossa mente permanece operando sob condições específicas e fornecendo impulsos de ação, acionando campainhas de alarme quando certos eventos ou desequilíbrios ocorrem. Quando eventos ameaçadores são localizados, é como se já existisse uma autorização prévia para esses assessores invadirem nosso silêncio e nos fornecerem relatórios constantes.
Quando temos a mente agitada em meio a meditação, podemos observar que nenhum dos conteúdos da agitação mental é realmente supérfluo sob o ponto de vista dos valores o objetivos de nossa vida cotidiana. Eles dizem respeito a atividades nossas, áreas que visitamos regularmente, seja através de pensamentos, emoções ou identidades que surgem em meio a condições. Por isto é essencial purificarmos nossas motivações usuais da vida, reintroduzindo o sentido profundo da moralidade.
O primeiro passo do nobre caminho
O primeiro passo do nobre caminho é realmente básico, nenhum praticante que deseje sucesso pode passar por cima disso. Ele diz respeito a motivação correta frente à vida e ao caminho espiritual, ou seja, o correto propósito. Ele pode ser melhor entendido através da explicação de Sua Santidade o Dalai Lama sobre a motivação básica dos seres sencientes em geral, que é a liberação do sofrimento e a experiência de felicidade. Sua Santidade explica de uma maneira muito simples e poderosa: “se você obtém felicidade na dependência de fatores instáveis, impermanentes, se busca sua liberação do sofrimento através de fatores flutuantes, a agitação certamente nunca cessará.” Com refúgios frágeis, teremos que nos manter incessantemente em movimento, como um equilibrista que não pode parar um minuto de mover-se compensando os desequilíbrios.
O verdadeiro refúgio não é algo que surge externamente, separado de nossa natureza última. Também o correto propósito não é um movimento que surja como uma recomendação ou ordem de algum “ser superior”. A princípio pode nos parecer que surgirá alguém que fornecerá um código a que teremos que nos adequar, mas uma das peculiaridades do pensamento budista é exatamente a reintrodução da moral e da ética como uma forma de liberdade nossa, não por uma adaptação a uma ordem externa. Em nossa cultura tradicional sentimos freqüentemente a ética e a moral como se fossem imposições externas sobre nós, e muitas vezes surge um desconforto nesse processo. Portanto devemos observar esse aspecto precioso do Darma, o fato de que realmente não impõe uma moral ou ética externas.
A moral e a ética ressurgem devido ao nosso objetivo fundamental que é a liberdade e o afastamento do sofrimento. Se desejamos esse resultado, temos um referencial segundo o qual podemos raciocinar. A conclusão desse raciocínio nos indica a necessidade de repousarmos sob fontes seguras de refúgio. Essas fontes seguras de refúgio, no caso do budismo, se traduzem como a natureza da liberdade, a natureza da criatividade e a natureza da compaixão. São como que três dimensões que representam a natureza última da mente, a natureza final não-construída, além de espaço-tempo, nome e forma, vida e morte. Essas três palavras parecem ter um sentido convencional, mas isso é um problema da nossa linguagem. Os meditantes, na medida que aprofundam sua compreensão, reconhecem o aspecto ilimitado presente nessas três palavras, e percebem sua unidade inerente.
Dessa forma, se nos fixamos em fatores transitórios, inevitavelmente vamos oscilar em meio a condições flutuan
tes. Por outro lado, se através de um propósito claro de suas mentes, repousarmos sob aquilo que não se move, sob a natureza última, então repousaremos sob a liberdade correspondente. E com isso atingiremos a realização do primeiro passo do nobre caminho.
Evitando as ações não-virtuosas
Atingindo essa realização, os três outros seguirão de forma natural. Em corpo, fala e mente não cometeremos ações de matar, ou ações de roubar, ou conduta sexual que venha a trazer sofrimento a nós e outros seres, tampouco mentiremos, ou agrediremos verbalmente, ou promoveremos discórdia, ou ainda falaremos inutilmente. Tampouco daremos ensinamentos heréticos, ou nos vincularemos a um processo de carência, ou desenvolveremos aversão, raiva, ódio e medo. Assim contamos dez “ações não-virtuosas” que os praticantes evitam. Eles as evitam de forma natural, espontânea, ancorados pelo correto propósito desenvolvido no primeiro dos oito passos do nobre caminho. Esta é uma prática sem esforço, estes três passos adicionais surgem como controle de qualidade de nossa motivação, ou seja, do nosso correto propósito.
Observando isso percebemos o efeito poderoso desses quatro primeiros passos. Eles são os responsáveis pela estabilidade que venha a surgir em nossa mente durante a prática formal. Se temos um reto propósito, naturalmente evitaremos as dez não-virtudes, e praticaremos as dez virtudes correspondentes, e rapidamente apresentaremos um comportamento sereno tanto na vida cotidiana quanto ao sentar para a prática formal. E não há nisso nenhum tipo de repressão ou imposição.
Apesar disso, quando os praticantes percebem isto, vêem que mesmo que o objetivo inicial seja perseguido, ou seja, que busquem efetivamente o correto propósito e que evitem as dez ações não-virtuosas, ainda assim, inexplicavelmente, surgem eventualmente os impulsos dessas ações, em corpo, fala e mente. A mente, mesmo que entenda quão impróprio seria agir dessa ou daquela maneira, ainda segue manifestando impulsos indesejáveis, e a sua prática de meditação é invadida pela agitação. Dessa forma são necessários ensinamentos adicionais.
Estes ensinamentos correspondem a uma transição importantíssima. Até esse momento, ao evitar as dez ações não-virtuosas e praticar as dez ações virtuosas, e ao manifestar o corrreto propósito, estes ensinamentos, porém, ainda dizem respeito a um certo auto-interesse. Ainda há alguém que ouve o ensinamento com um desejo pessoal de liberação do sofrimento. Mesmo que exista grande mérito, curiosamente, o ser que segue esse ensinamento é de fato um javali, tem ainda a motivação limitada. Este ser pode estar sentado com as pernas cruzadas como um Buda, mas é necessário que a motivação de auto-interesse seja transcendida.
A quinta etapa
Pela compaixão dos Budas e Bodisatvas, surge, então, o ensinamento correspondente à quinta etapa do nobre caminho do Buda, cuja descrição é o cerne deste texto. No zen isto é simbolizado pela afirmação de mestre Dogen “quando sentamos em meditação, praticamos inseparáveis de todos os seres”. Isso soa como um koan: os seres parecem separados, enquanto estamos sentados na sala de meditação eles estão fazendo várias coisas por todos os lados, então o que significa essa inseparatividade? Como solucionar isto?
Os grandes mestres também afirmam que se nossa prática de meditação é uma forma de lucidez diferente da lucidez do período que a precede e do período que a sucede, isto é um problema… A prática não pode ser dividida em três períodos de tempo. Devemos entender que antes, durante e depois da prática de meditação nossa mente é inseparável da mente de todos os seres. Enfim, não há diferença entre os estados de meditação formal e os estados mentais de lucidez da vida cotidiana.
Erroneamente muitos praticantes apenas mantém a aparência externa da prática no período que a sucede. Levantam e caminham em silêncio com o olho parado sem piscar, com uma cara “de praticante”. E assim fica óbvio que durante a prática de meditação eles também não estiveram em contato com todos os seres. Quando levantam e caminham, a prática parece resumir-se na experiência de não-contato com os seres. Esta seria a prática de um javali específico, mas não a verdadeira prática de meditação.
O quinto passo no nobre caminho é o antídoto efetivo para os dois problemas citados no princípio: dificuldades econômicas, a inadaptação que muitos praticantes sentem com relação à vida cotidiana e a conseqüente agitação durante a meditação.
Essa experiência também é simbolizada pela expressão “abandonar corpo e mente”. Com isso queremos dizer que abandonamos todo o auto-interesse. Esta é a grande morte, a morte do javali, o renascimento da liberdade. Ainda assim essas expressões seguem como desafios, como koans. No quinto passo no nobre caminho podemos tentar penetrar nessa prática.
Considero algo extremamente revelador podermos nos associar energeticamente com os outros seres, ter uma experiência de brilho, não apenas motivados por um auto-interesse, mas motivados por uma ação mental que é mais ampla e inclui a compreensão da situação dos outros no próprio contexto em que se encontram. Talvez a palavra “compreensão” não seja muito exata. Se existe alguém que compreende algo, ainda existe um objeto da mente. Me refiro de fato à circunstância na qual a pessoa faz sua mente operar sob as condições a que outro ser está submetido. A pessoa desenvolve um fluxo mental e energético, e consequentemente um fluxo de emoções, na inseparatividade com o outro.
Compaixão
Isto pode parecer muito complicado, mas esta capacidade todos temos. Um exemplo é o que acontece quando vamos ao cinema. Ainda que os personagens sejam fictícios, muitas vezes operamos nossa mente sob as condições que esses personagens aparentemente operam. Assim nossa mente produz emoções e pensamentos ligados a circunstâncias que não são nossas, mas de entidades virtuais que povoam a tela do cinema. Quando observamos de forma mais profunda, vemos que a nossa natureza, a natureza luminosa, criativa, de energia, é exatamente a que produz a aparência da realidade e inclusive a identidade que vive sob essa realidade aparente. Isso ao mesmo tempo que demonstra a energia de nossa mente, espelha também sua liberdade de sua manifestação. Quando essa energia e essa liberdade de manifestação se colocam sob as condições de um outro ser, a compaixão pode de fato surgir.
A compaixão se traduz como o interesse do praticante em que o outro ser se liberte das circunstâncias aflitivas sob as quais está operando. De uma forma mais completa, essa dimensão da compaixão deveria incluir ainda a experiência clara de que o sofrimento que o outro manifesta é completamente desnecessário, que surge por causas, e que essas causas podem ser removidas.
Como o sofrimento surge por causas, a remoção dessas causas é essencialmente voltar a reconhecer a natureza ilimitada como a identidade básica de todos os seres. Devemos observar ainda que este reconhecimento, esta forma de descrever a compaixão, pode ser intencionalmente praticada. Podemos fazer isso tanto na vida cotidiana quanto na prática formal.
Suponhamos que nossa atividade é a de um médico ou advogado. Quando recebemos um cliente podemos desenvolver essa compreensão profunda da dificuldade que o outro está vivendo, e a compreensão profunda de que ela não é necessária. E assim pode ser que em nossa mente brote um interesse genuíno, um impulso de ação para remover a dificuldade que o outro está vivendo. Por outro lado pode ocorrer que nossa ação seja motivada por um auto-interesse, podemos estar agindo por orgulho, por inveja, por desejo e apego, ou dominados por uma espécie de cansaço ou preguiça, ou dominados por uma sensação de aflição ou carência, ou ainda por raiva, aversão, medo. Um praticante consegu
e distinguir perfeitamente se está atuando a partir destas seis emoções perturbadoras, ou se está atuando efetivamente para benefício de outro ser, além da motivação de auto-interesse.
Um bom praticante nessa etapa reconhece perfeitamente a transição de uma operação mental em direção a outra mais abrangente e livre. Sendo um praticante de muita qualidade, ele vai reconhecer também tanto a fixação em si mesmo como a própria compaixão, ambas como ações livres da própria mente original. Assim ele também transcenderá a noção de culpa, ou de falha.
Amor
Após a compaixão temos a segunda das dez etapas do quinto passo. Essa qualidade é traduzida como “amor”. Sem reconhecer a liberdade natural da nossa mente com respeito à nossa própria identidade, podemos eventualmente olhar para um outro ser a partir do auto-interesse, e dessa forma brotam as seis emoções perturbadoras. Destas surgem os impulsos de atração, aversão ou indiferença. Mas podemos de fato olhar os outros seres e, em lugar de observá-los como objetos de ganho ou perda, ameaça ou proteção, podemos reconhecer suas qualidades inerentes, suas qualidades latentes ainda não manifestas. Podemos focar suas qualidades naturais que podem levá-los à felicidade e à liberdade, que podem se manifestar como suas próprias habilidades de trazer benefício a outros seres. Quando há este reconhecimento das qualidades no outro, e temos o impulso de trabalhar para que estas qualidades aflorem, a este impulso chamamos “amor”.
Alegria, equanimidade, seis paramitas e vacuidade
Havendo amor e compaixão, nós naturalmente manifestamos a terceira qualidade do quinto passo, que é alegria. Essa não é uma alegria comum, é uma alegria que se manifesta como uma energia interna incessantemente fluindo na inseparatividade com os outros seres, na dependência das qualidades de compaixão e amor.
Havendo a qualidade dessa energia incessante, surge a quarta qualidade do quinto passo, que é equanimidade. Quando ela surge, isso é sinônimo de estabilidade, é o fim da crise existencial. E a pessoa nesse momento sabe como manifestar sua energia vital da melhor forma durante sua vida. A pessoa que pratica essas quatro qualidades já apresenta uma serenidade natural que lhe permite a prática da sexta etapa do nobre caminho, ou seja, a meditação formal.
As seis qualidades seguintes são os seis paramitas. Sendo o primeiro generosidade, o segundo moralidade, o terceiro paciência propriamente dita, o quarto energia constante, o quinto concentração, e o sexto sabedoria. Essas seis qualidades são transcendentes, ou seja, são qualidades que, à semelhança das quatro anteriores, se manifestam pela capacidade natural da nossa mente em operar sob as condições a que outros seres estão submetidos, ou seja, a capacidade natural da mente de não estar presa a identidades.
Essa qualidade da mente de não estar presa a identidades, de se manifestar livremente no espaço e no tempo, além de nome e forma, espelha a natureza básica da vacuidade e luminosidade. Assim, a compaixão é a própria prática da liberdade original, a prática da mente naturalmente liberta, nesse caso manifestando-se através do interesse pelos outros seres. Assim compreendemos como a compaixão é completamente inseparável da vacuidade. Não houvesse a vacuidade, nossa natureza estaria presa a nossa identidade e a estados mentais particulares. A liberdade original natural sendo a própria expressão da vacuidade é o que permite a manifestação da compaixão. A mobilidade natural da mente espelha essa liberdade original, e assim as dez qualidades do quinto passo são possíveis. Se as dez qualidades do quinto passo são praticadas, cumprimos o pré-requisito natural para a prática da concentração da mente. Tendo abandonado corpo e mente, estamos sentados junto com todos os seres. E não há diferença entre antes, durante e depois da meditação formal.
A questão material da vida do praticante
Surgem dificuldades para os praticantes quando eles aumentam a intensidade da prática. Pensam que vão morrer de fome ou terminar na miséria e privação extrema… Aparentemente há uma competição entre a vida espiritual e a vida no mundo, um conflito básico entre a dedicação espiritual e o processo convencional da própria vida. Através de hábitos arraigados pensamos que a vida espiritual deva ser completamente diferente do processo de relação com os outros seres e do próprio processo econômico. Este tipo de ansiedade pode trazer dificuldades tanto para indivíduos como para os grupos. Para analisar este aspecto, começarei lembrando a forma como o próprio Buda vivia. Às vezes sou convidado por empresários para algum encontro. Geralmente começo falando da forma de vida do Buda e digo: observem o budismo, está ativo há vinte e seis séculos, nenhuma empresa jamais durou tanto tempo… Sustentando o Budismo não há bancos, empresas, nenhum tipo de organização piramidal, mas ainda assim este movimento se mantém puro, fiel e útil geração após geração. Por que?
Isso ocorre devido à pureza de seus ensinamentos e a sua unidade de propósitos. Existem outras tradições em que os professores espirituais são apoiados pela instituição, recebem até mesmo aposentadoria, como em qualquer outra profissão. No budismo não é assim, pelo contrário, em geral os professores é que ajudam as instituições a se estabelecerem e se sustentarem. Como isso é possível?
Quando o Buda atingiu a iluminação, demorou muito para voltar a visitar seus pais. Seu pai enviou muitos emissários para visitá-lo, com o propósito de lhe convidarem para uma visita. Após muitas tentativas, Buda concordou em retornar. O palácio foi avisado e prepararam uma grande festa para o príncipe, mas ele chegou a pé, enrolado num manto. “Meu filho, como você chega aqui assim nesse estado?”, diz o rei.
Pela manhã seguinte Buda vai mendigar sua comida na cidade. “Você é um príncipe, filho do rei! Como pode sair assim para mendigar na cidade?” Desesperou-se seu pai – uma grande desgraça na família. Mas Buda respondeu: “Se eu não mendigar, a sanga desaparecerá”. Esse é um ponto muito importante que devemos realmente entender. A mendicância do Buda curiosamente não é um processo no qual ele esteja pedindo alguma coisa. Quando o Buda mendiga ele está na verdade é oferecendo uma espécie de benefício para as pessoas. Uma das regras desse processo, por exemplo, é de que os mendicantes nunca devem fazer distinção entre os ricos e os pobres. Aliás considera-se quando os pobres efetivamente manifestam generosidade, seu mérito é mesmo maior do que quando pessoas de recursos doam a comida.
Quando o Buda chega na frente de alguém oferecendo a tigela, a própria presença do Buda inspira o coração do outro através de sua dignidade. É como se voltássemos ao momento em que o próprio Buda fez seus votos de bodisatva para Buda Dipankara. Ele oferece aos seres a mesma oportunidade que Buda Dipankara lhe ofereceu. Após a generosidade ao Buda Dipankara, durante incontáveis vidas, com a mesma experiência no coração, ele produziu benefícios incessantes aos seres até atingir a iluminação completa e final na forma de Buda Sakiamuni.
Quando Buda oferece a tigela, sua mera presença retira as pessoas dos reinos de sofrimento em que estão imersas. As pessoas imersas no reino dos demônios famintos, por exemplo, são imediatamente deslocadas para um reino superior ou para a liberação. No momento em que o Buda surge, os corações dos demônios famintos se abrem, e eles se tornam generosos. Sendo generosos não permanecem naquele reino específico, um universo virtual de seres carentes. No momento em que alegra pelo benefício que traz ao outro, o ser “carente” descobre-se capaz da generosidade, sai das fixações que o prendem naquele mundo. Saem diretamente da roda da vida para um estado de terra pura, isso acontece em um instante mágico e transformador.
Quando vemos os mestres que sucederam o Buda, vemos que geração após geração os mestres seguiram este conselho. Ainda hoje encontramos tradições que mantém os preceitos de mendicância e praticam da mesma forma. Mas mesmo naqueles que não mendigam diretamente, vamos encontrar a mesma postura. Os praticantes simplesmente focam incessantemente como trazer benefícios aos outros. A essência do processo de sustentação da sanga está apenas neste processo extraordinário de trazer benefícios aos outros.
Ainda assim pode ocorrer que durante o caminho espiritual obstáculos nos levem numa direção oposta. A fixação no processo da meditação, uma fixação que se traduz pela insensibilidade aos outros seres, cria a impossibilidade de inserção positiva ou compassiva no mundo, visto como perturbador e sem sentido.
Quando os praticantes sentam para praticar meditação encontram os dois tipos de problemas que estou abordando. Podem gerar agitação mental, de forma que nenhum benefício é possível, e essa agitação está ligada especificamente a uma falha com relação aos quatro primeiros passos do nobre caminho. Essa pessoa, como já examinei, motivada por elementos da roda da vida e dominada pelos três animais, gera carma e não gera méritos. Ele ainda acredita que sua felicidade pode ser obtida de fontes externas, e no fim permanece como um equilibrista das muitas fontes de satisfação, não que finalmente não as usufrui, mas terá raivas periódicas, uma ansiedade permanente, buscando se manter numa direção aparentemente favorável. A solução, como examinei, é retomar o correto propósito e naturalmente baseado nisso evitar as dez não-virtudes, cumprindo os quatro primeiros passos do Nobre Caminho de Oito Passos do Buda Sakiamuni.
O quinto passo é a moralidade baseada em uma fé natural. Quando a pessoa se move para benefício dos outros seres, ela tranqüiliza sua mente e isto potencializa as qualidades que levam à meditação, que é o sexto passo.
Suponhamos que quando a pessoa começa a meditar, pelo mérito gerado através de práticas em vidas anteriores, ela realmente consiga se concentrar. Se não foi por estes méritos, seu progresso pode ter vindo de um duríssimo treinamento nessa vida e, assim, focando suas próprias intranqüilidades através dos meses e anos e desenvolvido a prática de bondade, tenha ficado progressivamente mais silenciosa e mais estável.
A dificuldade neste ponto é o materialismo espiritual. A pessoa praticando em silêncio, isolada, pode gerar uma outra classe de auto-interesse, um auto-interesse sutil, também ligada à roda da vida, uma fixação em estados mentais particulares de felicidade interna. Dizemos que isto é uma ligação à Roda da Vida através do reino dos deuses.
Existem muitas diferentes condições de meditação onde a pessoa desenvolve uma estabilidade que se manifesta como uma insensibilidade ao que acontece ao redor. A pessoa ao olhar para dentro de si mesma sente que consegue efetivamente alcançar o que os mestres descrevem, porém de fato a pessoa se torna mais insensível, menos conectada, menos apta para trazer benefício aos outros.
Por outro lado, quando os bodisatvas praticam, eles praticam — como o Buda praticava — inseparáveis de todos os seres. Eles não sentam sozinhos, mas reconhecem suas próprias dificuldades juntamente com as dificuldades de todos os seres. Reconhecem que muito poucos meditam. Reconhecem que a maioria das pessoas procura a saída onde ela não pode ser encontrada. Eles sentam e sua forma de prática pode efetivamente trazer benefício para os outros. Com essa motivação eles percebem que se eles não praticassem, não desenvolveriam habilidades para ajudar — portanto eles sentam com essa motivação e sua meditação é uma manifestação de generosidade. Da mesma forma, se entram em retiro, entram em retiro para produzir beneficio para os seres. Não é um “adeus mundo cruel”, não é um impulso de isolamento, a ida para o retiro representa o reconhecimento de que a prática direta da sabedoria mais sutil produz genuínos benefícios aos outros seres.
É imprescindível que o caminho do meditante tenha esta característica, que seja efetivamente o caminho do bodisatva, o Caminho do Meio. Isto realmente significa a própria inseparatividade de todas as coisas e seres, e um interesse efetivo de trazer benefícios a todos.
É nesse sentido que Sua Santidade o Dalai Lama reconecta nossa prática diária e nossa vida cotidiana, com o caminho espiritual. Ele diz “todos os seres desejam a felicidade e buscam afastar-se do sofrimento”. Assim nossa missão é essencialmente ajudar os seres nesse sentido. Esta é a motivação de um bodisatva, sua energia não está presa à sua própria identidade.
Os animais são considerados inferiores aos humanos, mas muitas vezes carregam comida na boca para alimentar outros animais. É uma atividade extremamente sofisticada, é a mente ultrapassando o próprio auto-interesse e trabalhando para levar benefício para os outros. Mesmo um pequeno pássaro tem uma sabedoria tão surpreendente. Ele poderia simplesmente comer, mas cuidadosamente pega o alimento com o bico para atender pequeninos seres irados que estão esperando famintos no ninho. Ou outro caso surpreendente que vi é o de uma porca amamentando filhotes de tigre…
É um processo surpreendente utilizado para aumentar a sobrevivência de filhotes de tigres em cativeiro. As mães tigresas são ansiosas no cativeiro e têm dificuldade de amamentar seus filhotes. Isso me parece uma enorme generosidade, compaixão no sentido verdadeiro. Os seres humanos também agem assim, com relação aos filhos e a outros seres.
Esquecidos da compaixão temos nossos próprios afazeres urgentes e prioridades inadiáveis. Assim o tempo passa. Quando os ciclos da vida se completam, tudo desaba, tudo perde o sentido e o que fica de bom tem um único sabor: a generosidade, o amor e a compaixão que praticamos para com os outros seres. Aquilo que fizemos auto-centradamente acaba realmente. O que fizemos carinhosamente, mesmo que, no plano material pareça não mais existir, curiosamente porque fizemos para um outro, segue presente em uma dimensão de satisfação sutil. É uma satisfação que não morre, é uma satisfação transcendente. Essa palavra “transcendência” é muito correta. Essas ações ultrapassaram nossa identidade, nossa energia realmente não está presa em nós mesmos, é naturalmente transcendente. Não há esforço nisso.
Dito de forma mais futebolística, se eu torcer pelo time de “eu sozinho”, minha chance é mínima. Que chance temos ao “torcer” por nós mesmos? Imagine que coloquemos nossa estabilidade em nossas vitórias pessoais: nossa chance é mínima. Mas por outro lado, nossa natureza não está presa a nossos auto-interesses. Nossa natureza é naturalmente ampla.
Esse é o fato: quando manifestamos essa natureza ampla, estamos fazendo exatamente o que o Buda fez durante as quatro décadas finais de sua vida. Ele apenas se dedicou incessantemente a produzir benefícios para os seres. À medida que isso ocorria, o Buda nunca precisou ter um palácio, nem uma simples cozinha ele tinha. Ele nunca precisou de proteção militar. Ele apenas organizou a vida da sanga de forma muito simples, e os seres ao redor ficavam felizes em poder ajudar. Assim vimos os vários reis protegendo o Buda, oferecendo instalações, prédios, palácios, jardins, onde o Buda deu seus ensinamentos.
Por outro lado, curiosamente, durante seu desenvolvimento posterior, aparentemente o budismo se solidificou. Manifestou-se através de muitos prédios, mosteiros imensos. Especialmente o Mosteiro de Nalanda, na Índia, onde por algum tempo chegou a haver 10.000 pessoas mantendo o Darma vivo através de práticas e estudos. Porém, exatamente porque se estruturou dessa maneira, ele pode ser atacado e foi extinto na Índia. É paradoxal. A estrutura produz vulnerabilidade.
Quando algo se estrutura assim, se torna
sólido e está sujeito ao desgaste e a ataques. Com dor no coração contemplamos o relato dos últimos momentos da grande e sagrada Universidade de Nalanda na Índia, atacada militarmente que foi. Mais de uma vez ela foi destruída, mas ressurgia de alguma outra forma, até que finalmente desapareceu.
A Stupa de Bodhigaya é outro exemplo, na impossibilidade de ser destruída pelos atacantes, foi coberta de lixo. Como havia um prédio, esse prédio poderia ser atacado, profanado, é o Darma expresso no espaço e tempo. Ainda assim, a compreensão mais profunda, aquilo que realmente traz benefício, o Darma genuíno, este nunca morreu. Este é o verdadeiro ponto de solidez do budismo, instalado na fortaleza do coração.
O Darma no Tibete é outro exemplo. Observando os acontecimentos vemos que o vento da impermanência soprou forte, e o que aconteceu? As sementes emplumadas voaram. Se elas têm qualidades, florescem. O terreno fértil é onde há dor, confusão, matéria podre. Da própria dor surge a sustentação da árvore da cura. É um processo extraordinário onde confusão, destruição e renascimento se misturam, não conseguimos distinguir o que é bom ou mal. A impermanência destrói, porque destrói propaga as sementes do Darma sagrado. De fato vemos que as boas sementes vingaram, mas aquelas que não tinham capacidade não vingaram.
Enfim, se examinamos os praticantes que sentam buscando meramente estabilidade, vamos perceber que esses praticantes geram uma insensibilidade com relação aos outros seres. É uma simples fixação em estados mentais externos. Na exata medida dos poucos méritos que eles proporcionam para os outros, eles recebem seu retorno, e devido a isto eles imaginam que o mundo não é generoso, que não reconhece os grandes praticantes que eles imaginam ser. Não entendem porque algumas manifestações do Darma prosperam e outras não. Se nós copiarmos a forma do Buda, vamos adiante. Essa é uma receita comprovada há vinte e seis séculos.
Sua Santidade o Dalai Lama tem uma qualidade extraordinária, porque ele traduz essa receita do Buda de acordo com as capacidades das pessoas, o que aliás era o que o próprio Buda fazia. Então vamos perceber pessoas que têm capacidade de ajudar os outros oferecendo coisas impermanentes, mas que os outros sentem como necessárias. Um amigo, por exemplo, pode ajudar inclusive oferecendo algo que talvez não seja muito apropriado. No entanto, a outra pessoa imagina que aquilo é bom e aceita, dessa forma surge mérito. Os pais, por outro lado, já olham de uma forma mais ampla, eles buscam produzir benefícios mais permanentes, mais verdadeiros.
Freqüentemente, são os próprios pais e mães que ensinam a língua para uma pessoa. Ela vai usar aquele idioma até o fim de seus dias, e vai aprender uma série de atitudes que vão ser úteis durante toda sua vida. Porém, muitas vezes eles não conseguem produzir grandes transições na vida dos filhos. Então há outros seres que dispõem de poder, capacidade, que convidam as pessoas e proporcionam processos de forma que ela salte patamares. Enfim encontramos seres que ajudam de uma forma ainda mais poderosa, os professores espirituais. Eles oferecem ensinamentos que não se dissolvem nem mesmo no processo da morte. Eles criam benefícios que se eternalizam e permanecem verdadeiros mesmo para outras vidas. Quando olhamos essas diversas formas de benefícios, percebemos que nossa própria atividade de beneficiar os outros seres deve estar incluída em alguma dessas formas mais ou menos amplas.
Por outro lado, sempre que trazemos benefícios de alguma maneira, o universo retribui. Imagine você na calçada esmolando com uma latinha. Hoje em dia talvez o processo seja mais direto “me dá um real” é o que ouvimos…, mas imagine algum tempo no passado. Nós com este rosto que temos, não iríamos ficar nem meio dia parados ali. Logo vai passar alguém e ver que estamos no lugar errado. Chega alguém e, se começamos a falar, essa pessoa já diz “que tal você dar umas aulas para aquelas crianças ali?” Talvez você acabe tendo que contar sua vida, e vai ser desmascarado. Por outro lado se você vê uma pessoa do seu lado que está na mesma situação, você logo terá o impulso de socorrê-la, você certamente não conseguirá ficar parado frente ao sofrimento verdadeiro do outro. É por isso que você nunca vai para a calçada.
Não temos este carma de ficar como pobres coitados incapazes de se conectar com os outros seres. Na medida que não temos esse carma, isso não vai acontecer conosco. Como temos a capacidade de nos interessar pelos outros, nossa vida segue. Por outro lado um meditante equivocado pode imaginar que o melhor benefício é ficar parado e insensível ao mundo ao redor. Ele pensa que tudo está perdido, que tudo que ele tem para fazer é adotar essa posição e esquecer os seres. Qualquer pessoa que surge na frente, qualquer coisa do mundo, parece uma perturbação.
Sua experiência interna é que quando está parado e consegue manter o isolamento, sente-se bem, quando ele se conecta com os outros, tudo anda mal. Assim ele pensa que sua prática é o isolamento. Por outro lado se compreendemos o caminho do bodisatva, reconhecemos que tudo que fazemos, seja prática espiritual, conversar, interagir, tudo isso, são formas de trazer beneficio. Nesse caso se surgem dificuldades, as falhas de motivação são a origem.