Seria importante a gente entender que as identidades se manifestam como os três animais ou os três venenos: a ignorância, a aquisitividade ou avareza e a raiva. Esses três venenos terminam manifestando Upadana, ou seja, a partir desse núcleo nós temos muitas ações volitivas. Se a gente for olhar de onde surgem os impulsos das nossas ações, da nossa vontade, nós terminamos localizando esses impulsos nos três venenos, ou seja, na ignorância que vai surgir como identidade, nos impulsos constantes de trabalhar e mudar tudo em função da identidade e da visão de mundo – da bolha – e da raiva, que seria a proteção agressiva das fixações a que estamos ligados. Então, por exemplo, se a gente vê um jogo de futebol em que todo mundo se agride isso é a raiva, é a cobra. Mas de onde é que vem isso? Vem da tensão ligada aos referenciais a que eles estão submetidos. Eles fazem qualquer bobagem, isso acontece.
Mas nesse momento, para nós, é muito importante não olhar isso como uma maldição que cai sobre nós, mas entender isso como uma expressão de uma inteligência que opera sob referenciais, e a gente pode utilizar essa mesma inteligência com outros referenciais. Então, por exemplo, nós podemos olhar o fato de que essas inteligências que produzem a raiva, ou produzem o reconhecimento de identidades, ou produzem a ação incessante, podem mudar, e nós fazemos, em outro contexto, outras coisas. Então, as pessoas brigaram aqui, mas neste momento estão indo para casa. Quando chegarem em casa, elas não vão continuar brigando. É uma outra bolha, outra identidade, outra prioridade, é outra coisa. As pessoas não são aqueles briguentos que estavam lá, aqueles briguentos são um episódio, um tipo de mente que surge por um tempo, segundo certos referenciais. Se as pessoas pacíficas disserem: isso são eles! Isso não é verdade, porque se aquelas pessoas pacíficas estiverem sob aquele conjunto de referenciais, elas vão terminar fazendo a mesma coisa também!
Não julgamento
Essa é a razão pela qual vocês vão encontrar dentro do Budismo e, talvez, dentro do Cristianismo também, a introdução da noção de “não julgamento”. Como é que nós vamos julgar alguém pela atrocidade que ele está fazendo? Ele não é aquilo! Ele se manifesta naquele momento daquela forma, um pouco adiante, em outra perspectiva, ou seja, em outra bolha, ele acha aquilo completamente deplorável, não sabe por que fez e pede desculpas! Então, a noção das identidades não resolve, mas nesse momento nós estamos sob a estética de transformar tudo em explicações por identidades. Isso vai ao ponto de nós termos o sistema judicial que fixa a identidade e condena a identidade. Se isso resolvesse, estava tudo resolvido! Mas a gente começa a pensar por que é que o sistema judicial não resolve, porque não adianta ficar aprisionando todo o mundo. É porque o problema não vai para a cadeia junto com a pessoa, o problema paira, ele está naquilo que a gente chamaria de Sambogakaia, está no nível sutil.
O verdadeiro problema, o verdadeiro obstáculo paira livre, pegando as pessoas aonde for. Quando a pessoa aparece com aquele problema, ela é indiciada, aquela identidade é indiciada, condenada e aprisionada, mas o obstáculo não vai junto, aquilo é uma dispersão de esforço. A gente deveria perguntar: por que é que a pessoa fez isso? Com uma pergunta verdadeiramente clara: como é que você viu isso? A pessoa vai descrever a bolha e a identidade que estava ali dentro. Se a gente prender a pessoa, a gente pergunta: eu prendo a bolha e prendo a identidade? Eu não prendo, porque elas se transferem para outras pessoas. É parecido com a situação do tráfico. Vamos prendendo os chefes do tráfico e vamos apenas promovendo a ascenção dos outros, é muito simples, porque aquilo é um software que está do lado de fora, aquilo não são as pessoas. É como a pessoa adoecer, e aprisionarmos a pessoa, mas não conseguimos prender a doença, nem extinguir a doença deste modo, ela está presente. Esse é o problema.
A gente precisaria entender isso ao ponto de nós mesmos nos perdoarmos, nós mesmos perguntarmos: entre essa multiplicidade de identidades que eu começo a manifestar desde bebê, eu seria mesmo o quê? Essa é uma pergunta super importante. Quando a gente se pergunta o que é que nós seríamos, nós começamos a andar em direção ao caminho, que é o caminho que vai revelar a natureza primordial. A natureza primordial é de onde as múltiplas identidades podem surgir, e as múltiplas compreensões podem surgir. Então, nós estamos na base do processo da originação dependente, dos doze elos da originação dependente, a gente retorna a essa base, nós somos isso.
O sofrimento e as causas do sofrimento são opções
Esse ponto é crucial, porque faz com que a gente substitua as visões limitadas por uma liberdade de fazer outras coisas. Nesse momento é como se a gente se livrasse da maldição do samsara inteiro. Porque, quando a gente percebe que o sofrimento e as causas do sofrimento são opções, em um nível em que a gente não tem consciência de que está fazendo as opções, e descobre o nível de liberdade que vem antes de fazer as opções, a gente consegue entender isso e começa a dispor dessa liberdade, então surge a terceira nobre verdade, ou seja: a liberação é possível, eu não preciso ficar preso às opções. Aliás, eu nunca estive preso às minhas próprias opções, porque ao longo da vida nós fomos trocando de bolhas. As bolhas não têm o poder de aprisionar verdadeiramente. Nós vamos transmigrando entre as bolhas, e mesmo num único momento, em um único dia nós podemos trocar de bolhas para cá e para lá. Então, nós não somos as identidades que estão fixadas nas visões limitadas, que produzem a ansiedade de obter resultados e produzem a sensação de explosão por sofrimento, por agressão. Nós não somos isso!
A liberação é possível
Essa consciência clara que vem da contemplação das múltiplas experiências nossas nos permite dizer que a liberação é possível. Nós entendemos que, atrás das nossas fixações, e atrás de todo o colorado e de todo o gremista existe um ser livre. Esse é o ponto. Eu acho que os colorados e gremistas verdadeiros não deveriam admitir isso! Eles deveriam dizer: “não, eu sou gremista desde sempre! Quando o Big Bang explodiu, saiu uma cor azul para um lado e uma cor vermelha para o outro lado. Ainda que as pessoas não percebam, existe o aspecto gremista e colorado atrás de todas as explicações!” Quando nós olhamos isso, seria importante a gente rir um pouco e descobrir que existe uma liberdade anterior. A gente também pode localizar como é que o “vírus” foi transmitido. Como é que o torcedor gremista nasceu, e como é que o torcedor do Inter nasceu, como é que o torcedor do Flamengo nasceu, e como é que os sofredores cruzeirenses nasceram, como é que isso aconteceu, como é que surge isso. E aí nós localizamos essa mente anterior, essa natureza de liberdade. Então, a gente vê que, por mais gremista, mais colorada, mais cruzeirense, mais atleticana que a pessoa seja, aquilo não consegue dominar a natureza livre dela, isso é alguma coisa super importante.
Quando nós percebemos que existe essa natureza anterior, essa natureza livre, nós podemos entender a terceira nobre verdade: a liberação é possível. É possível, porque a prisão mesmo não consegue ser absoluta, a prisão é limitada. Ela não consegue ser absoluta. Então, os três venenos traduzidos como os três animais que são o centro da roda da vida são episódicos. Se a gente colocasse em um gráfico esse aspecto, aquilo surge, dura um tempo e cai. Aí surge outro, dura um tempo e cai. Não tem uma base. Mas embaixo, aquilo que produz o surgimento das várias manifestações é constante e incessantemente presente. Então, nós estamos retornando à consciência da natureza búdica incessantemente presente, que se manifesta de vários modos. Eu não vou conseguir uma solução a partir dos vários modos de manifestação, mas eu preciso desenvolver a consciência sobre a base incessantemente presente e lúcida.
Esse é o foco do texto Iluminação da Sabedoria Primordial e dos ensinamentos correspondentes à iluminação da sabedoria primordial que culminam na liberação, que são essencialmente ensinamentos Dzogchen, mas esses ensinamentos também são a base do Satipatthana Sutra e também do Anapanasati Sutra, desses outros ensinamentos que vão direto, que desenvolvem a visão direta da realidade da forma como ela se apresenta, então esse é o ponto que nós estamos seguindo. O texto da Iluminação da Sabedoria Primordial é a base do programa de 21 itens que a gente segue, então é a linha temática geral do processo. A gente vai criando passagens, e ampliando partes, porque, uma vez que a gente não entende bem alguma parte, a gente precisa ampliar aquilo e tornar mais palatável, mais claro e mais amplo, e vamos seguindo de ponta a ponta esse processo.
Aqui, nesse momento, eu focaria especialmente a terceira nobre verdade. A gente precisaria olhar múltiplas vezes as nossas prisões e as prisões dos outros seres até o ponto que a gente veja que elas não subsistem mais do que um tanto. Elas vão indo e vão desaparecendo. Mas tem uma base que permite o surgimento de outras manifestações e outras manifestações. A gente precisaria entender isso. Quando entendemos isso, estamos no ponto para a geração de bodicita.
Ensinamentos oferecidos por Lama Padma Samten em 13 e 14 de março de 2020 no templo do CEBB Caminho do Meio. Os áudios do retiro estão disponíveis no site da Ação Paramita, na linha temática O Darma do Buda no Mundo. O trecho acima transcrito corresponde ao capítulo 6.
Transcrição: Clarissa Gleich
Revisão e edição: Stela Santin