Abaixo a transcrição da palestra “Saúde Mental e Emocional: o estabelecimento do adoecimento mental e emocional e a ampliação da visão através das Seis Perfeições” oferecida por Lama Padma Samten no dia 3 de abril de 2021, organizada pelo CEBB de Florianópolis.
Contemplando os aspectos grosseiro, sutil e secreto
Este tema da saúde mental e emocional é interessante pelo momento que estamos vivendo, com essa epidemia galopante. Naturalmente nós podemos, no budismo, analisar as coisas dentro das perspectivas grosseira, sutil e secreta. O aspecto secreto parece mais extraordinário, mais profundo, e de fato o é. Porém, como estamos envolvidos em um conjunto de realidades flutuantes que invadem a nossa mente e nos obrigam a várias ações diretas e causais, o aspecto grosseiro é crucial para nós. É interessante como cada um desses níveis termina gerando a necessidade de entendermos tudo a partir do nível subsequente. Nós temos as nossas vidas e até agora, as pessoas, entendendo ou não o Darma do Buda, vivem e funcionam no mundo. Vão se educando e sendo educadas através de um processo de experimentação e erro, um processo de construção, e vão operando.
O aspecto grosseiro
A maioria das pessoas não tem nenhum tipo de percepção mais ampla de como efetivamente surgiram, de como as coisas se desenham, mas mesmo um bebê já sabe como funcionar. Sabe como fazer para a sua vida se preservar, para ir avançando. Fico muitas vezes admirado ao ver as crianças e sua resiliência, especialmente em períodos de grandes problemas, como guerras: elas presenciam violências, o mundo delas termina e é profundamente transformado, mas aparentemente elas se mantêm equilibradas, não se desesperam. Elas não têm uma visão estratégica, vivem o dia, o momento.
Ao olharmos o que acontece com cada um, vemos que a pessoa vive o momento e, mesmo que tenha grandes dificuldades estruturais, eventualmente não o percebe. Segue vivendo como é possível dentro de uma visão que não precisa incluir muitos dias ou muitos anos, e onde tudo vai mais ou menos fluindo.
Se olharmos os animais, também encontramos esse comportamento. Eles não têm uma visão estratégica, não compreendem como a vida se estabelece e se mantém, e como aquilo vai funcionando. Isso possibilita que andem e tenham mecanismos de proteção próprios. Também têm méritos, o que é um ponto muito importante, pois os méritos estabelecem uma resiliência de grupo. Por exemplo, se vemos crianças em dificuldades, nossa tendência clara é de protegê-las. Se vemos alguém em dificuldades, ficamos comovidos, buscamos proteger. Isso é o que podemos chamar de méritos. Todas as pessoas têm méritos; por vezes se comportam mal, mas ainda assim ficamos procurando um jeito de poder protegê-las e possibilitar que se aprumem e andem melhor.
Carmas e méritos no aspecto grosseiro
Quando andamos pelo mundo não estamos sozinhos de fato. Andamos dentro de uma teia de relações que não precisa estar estabelecida previamente, no sentido convencional; mas já vivemos dentro de um processo em que os seres humanos se ajudam, se protegem. Podemos chamar esse aspecto de méritos, que foram estabelecidos em um tempo anterior. A própria existência do ser humano está na dependência desse fato. Não vivemos sozinhos, e nos relacionamos desse modo, através de méritos. Também nos relacionamos através de carmas. Os seres humanos têm essa contradição: eles se protegem, mas são, ao mesmo tempo, predadores uns dos outros, em vários níveis. Esse é um ponto comovente. Especialmente, neste tempo de agora, os seres humanos são talvez o maior perigo para os próprios seres humanos. A importância dos outros predadores foi se reduzindo, e os seres humanos se tornam a grande ameaça aos próprios seres humanos.
Essas são as relações que temos a partir de carmas e méritos. Porém, de modo geral, não vemos isso – vivemos sem nos dar bem conta desses aspectos. Mesmo as expressões “carmas” e “méritos” pertencem ao budismo e às tradições hindus, e foram importadas pelo Ocidente com uma compreensão ainda limitada. Esses aspectos de carma e mérito são os que regem o que chamaríamos de nível grosseiro. Em um certo momento começamos a vislumbrar algo em nós de forma um pouco mais profunda, e esse vislumbre mais profundo vem justamente desta conexão com méritos e carmas, que são uma interface com o aspecto sutil.
O aspecto grosseiro no âmbito individual
Temos uma existência no mundo que parece ser a nossa existência, o nosso jeito de andar. Se quisermos nos descrever, tiramos uma foto e dizemos: “eu.” Isso, na perspectiva budista, é um nível muito grosseiro. Se a pessoa for falar de si, vai falar de seus impulsos, suas visões, desejos e apegos; das coisas que já obteve a partir de desejos e apegos; das satisfações que já teve no nível de desejo e apego; dos lugares que visitou; do que vê como correto, como visão, como sabedoria. Quando a pessoa descreve esses aspectos, na perspectiva budista está descrevendo os seus carmas, os seus méritos, as estruturas dos doze elos e os processos de como sua própria mente está operando. Não está descrevendo realidades; está descrevendo construções: opções que não percebe como opções; ela pensa que aquilo é mesmo o que ela é.
O aspecto grosseiro inclui essa incompreensão da nossa própria existência. Inclui a vida enquanto a busca de preservar os impulsos cármicos, e realizar tais impulsos cármicos. Não entendendo bem o que é carma e o que é mérito, tentar preservar a sua própria vida, seu próprio impulso, e considerar que liberdade é, efetivamente, poder realizar o impulso que vier à mente.
O aspecto grosseiro no âmbito social
Socialmente, isso por vezes surge como uma doutrina que brota, como o liberalismo, onde as pessoas aspiram a essa individualidade exacerbada e completa, com a qual deveriam poder fazer o que lhes surge à mente. E essa liberdade de fazer o que surge à mente é uma das qualidades de um tipo de organização social, que é proposta como se fosse a melhor. Isso termina se refletindo sobre a organização econômica, e parece que o funcionamento econômico coletivo vai funcionar melhor, como resultado de um impulso variado em todas as direções que as pessoas possam ter. Esse funcionamento econômico termina surgindo como o referencial essencial e primeiro para verificarmos se há saúde social, se há saúde daquele país, se há um progresso efetivo ou não. Tudo isso é considerado uma abordagem no nível grosseiro.Tais abordagens têm, naturalmente, consequências, que chamaríamos de cármicas, ou seja, decidimos coisas com visões estreitas, que produzem resultados cármicos em várias direções.
O processo social do liberalismo não é algo recente; é simplesmente a sensação de uma doutrina social que brota do egoísmo natural dos seres, que aspiram à sua felicidade pessoal e a superar os seus próprios sofrimentos através dos impulsos como eles lhes vêm. É natural que, em tempos anteriores, isso tenha originado o processo predatório dos seres humanos sobre os próprios seres humanos – o que não é algo de agora, mas que se derrama pela história da humanidade. Os próprios arqueólogos e antropólogos localizaram esse ponto, e viram que alguns seres humanos tinham ossos grandes, e outros eram raquíticos, associando isso justamente ao início das povoações e grupos, quando surgiu um certo nível de escravatura. Os seres humanos começaram a escravizar uns aos outros. O processo de urbanização produziu o surgimento do raquitismo: levou ao fato de haver pessoas com privilégios e outras que eram, de algum modo, exploradas .
A história da escravização dos seres humanos pelos seres humanos é muito antiga, e aparentemente, na perspectiva da estrutura dos povos, quase impossível de evitar. A escravatura é, por vezes, considerada um ato de compaixão, no sentido de que os grupos guerreavam e poderiam se matar até o fim; mas em vez de matar, escravizavam os outros. Não podiam considerar que os outros eram cidadãos daquela região, ou iguais. Quando os grupos humanos começam a estabelecer esse tipo de visão, todo o processo de exploração e destruição se torna algo aparentemente normal. Mesmo sociedades que consideramos muito desenvolvidas, como os próprios gregos – que desenvolveram o conceito de democracia – funcionavam à base da escravidão de outros povos, e eles mesmos eram escravizados por outros. Essa dominação desenfreada de povos sobre outros era uma prática normal naquele tempo.
O que estou descrevendo é o aspecto grosseiro, na perspectiva grosseira. Poderia descrever o aspecto grosseiro na perspectiva sutil ou secreta. Mas estou descrevendo o aspecto grosseiro na perspectiva grosseira, ou seja, seres humanos com essa mente olhando o que fazer dentro desse mundo que parece ser o mundo. A primeira perspectiva que temos é de que isso, aparentemente, não tem solução, é construído assim. Mas, espantosamente, percebemos que os seres – mesmo sem entender o aspecto sutil ou secreto, mesmo nesse mundo aparentemente sem solução – ainda acham que certas coisas são melhores, e outras piores. Estabelecem processos de educação e hierarquia, estabelecem funcionamentos que são, supostamente, inteligentes e sólidos. Podemos dizer que, ainda que o conhecimento sobre os aspectos sutil e secreto tenha avançado e esteja presente e acessível, ele não é essencialmente utilizado, senão aqui e ali, porque a perspectiva grosseira parece suficiente.
Quando estamos envolvidos nos aspectos grosseiros, parece que aquilo está bem, é assim mesmo. Um sintoma disso é o fato de formarmos as gerações subsequentes, e estabelecermos os processos das escolas e de ensino tomando por base quase totalmente os aspectos grosseiros. Mas os aspectos grosseiros trazem alguns desafios que vão conduzindo ao aspecto sutil. É como se estivéssemos, dentro da nossa linguagem, tratando de bloco menos um e bloco zero (que são essencialmente os aspectos grosseiros vistos da perspectiva grosseira) e agora começássemos a migrar para o bloco um – começamos a olhar de uma forma um pouco mais ampla tudo o que acontece no nível grosseiro.
O aspecto sutil
Podemos começar a nos perguntar de onde viemos e por que todo mundo, enfim, vive e morre. De onde vem esse tipo de situação? Algumas coisas são um pouco perturbadoras, porque as pessoas têm o seu cotidiano, e acham que aquilo é tudo; mas se olharem para o céu noturno, verão que estão dentro de algo muito grande. Se tomarem um telescópio ou um binóculo e começarem a olhar, irão se surpreender, porque estamos envoltos e fazendo parte de uma coisa muito extraordinária. As pessoas que começaram a pensar sobre isso sempre se defrontaram com visões que eram muito mais amplas do que as visões do cotidiano. No budismo, se olharmos o conjunto de enganos que vivemos – essa realidade grosseira que vivemos agora e que parece totalmente abrangente – sob o aspecto sutil e secreto, é super limitado. Ele termina sendo internalizado como a nossa própria identidade.
A nossa identidade brota aos nossos olhos como uma sabedoria interna que responde, de modo natural, às aparências. Essa sensação de resposta às aparências dá uma base para apontarmos nossa própria existência, porque se há esses impulsos correspondentes às coisas, isso é a própria realidade das coisas – e então esses impulsos são a nossa existência. Terminamos por nos descrever a partir dos impulsos que brotam. Quando olhados das perspectivas sutil e secreta, dentro das tradições védicas ou budistas, eles são vistos como a própria ignorância, simbolizada pelo javali ou pelo animal que olha para baixo, cavoca a terra e pensa que isso é tudo. Esconde-se em buracos e pensa que, desse modo, lida com toda a realidade: tem impulsos, agressão, acumulação. O javali é o símbolo do aspecto que se refere à nossa própria identidade que está obscurecida. É como se o javali nunca contemplasse o céu noturno e nunca pensasse: “Afinal, onde é que nós estamos?” Essa noção de vida e morte, de origem e destino, e de que somos muito pequenos face ao céu gigantesco, é o que começa a nos remeter àquilo que chamaríamos de bloco um, o lugar onde começamos a perceber que a visão limitada do javali não dá conta de tudo. Existem coisas muito mais amplas.
É o lugar de onde surgem as tradições espirituais e o ocultismo, que vai dar origem à ciência. Mas o ocultismo não é propriamente substituído pela ciência, ele passa a viver na forma da própria ciência. Quando os cientistas olham as aparências comuns, não as vêem apenas como comuns. A perspectiva do ocultismo sucede à Idade Média e vai dar origem ao iluminismo, à Revolução Francesa e às revoluções subsequentes. Vai dar origem à noção de que todos os seres humanos são iguais, e à noção de igualdade, fraternidade e justiça. Isso vem da visão extraordinária que brota a partir do ocultismo e do iluminismo. Essa visão é o início ou o transbordar do bloco um nos tempos da nossa cultura, pois enquanto vivíamos a Idade Média de uma forma muito grosseira no Ocidente, no Oriente tínhamos o mestre Dogen, por exemplo, falando da “sutileza da sutileza” da vacuidade.
Tendemos a considerar que a cultura ocidental é tudo, mas, realmente, não é. Estamos vivendo um dos momentos mais importantes da cultura ocidental, que se derrama sobre o planeta inteiro, e é uma tragédia! A cultura ocidental está trazendo a destruição do ambiente, coisa que nunca aconteceu em nenhuma outra cultura, em nenhuma outra época. A cultura ocidental trouxe também um processo de colonialismo totalmente predador, que transforma o Império Romano numa coisa maravilhosa, ainda que este tenha sido um processo superagressivo. Mas, enquanto os romanos estabeleceram culturas locais, que progrediam, o colonialismo moderno drena a energia vital de cada um dos povos a que se conecta.
Carmas e méritos no aspecto sutil
Neste momento, o Brasil é o país onde está morrendo muito mais gente do que em qualquer outro. Isso não vem da fragilidade do ser humano brasileiro, mas da mente que está operando aqui. São aspectos muito interessantes, porque remetem ao aspecto sutil. Esse é o carma social dos brasileiros. Por outro lado, o que é o carma? Olhamos para dentro de nós e vemos: será que eu tenho carma, tenho mérito? Essa é a leitura grosseira de carma e mérito.
A leitura sutil é de que o carma é algo móvel, e que o mérito é algo móvel. Não é uma lei que desaba sobre mim. Quando pensamos que o carma é uma lei que desaba sobre nós, é porque não temos a capacidade de liberdade da nossa mente diante dos impulsos e das visões limitadas. Se eu tiver mais liberdade, posso substituir os carmas por méritos, e consigo andar. Nesse momento em que descobrimos que os carmas não são leis externas fixas e que os méritos também não o são, e que é possível operarmos dentro disso, descobrimos que podem brotar ações melhores e piores. Encontramos referenciais melhores ou piores. Esses referenciais, na visão budista, são as Quatro Qualidades Incomensuráveis e as Seis Perfeições, atuando no aspecto grosseiro, sutil e amplo de visão da realidade. Se temos capacidade de agir nesse nível sutil, nossa vida melhora muito no nível grosseiro.
O aspecto secreto
O aspecto secreto começa a surgir quando olhamos os vários aspectos sutis e pensamos: isso brota de onde? De onde vêm compaixão, alegria, amor, equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante, concentração, sabedoria? De onde vêm as Quatro Qualidades Incomensuráveis e as Seis Perfeições? De onde vem essa tendência a olhar as coisas de um certo jeito?
Aí brota a noção da vacuidade, nessa interface do aspecto sutil com o aspecto secreto. Ou seja, aquilo que estou experimentando e vendo desse modo, é inseparável da base da minha própria mente – surge de modo luminoso e, ainda que não seja totalmente real, se torna real, e operativo. Mas não preciso ficar preso: posso redefinir isso e operar de outro jeito, sem ficar preso a tais realidades. Essa é a essência do aspecto sutil. Estou descrevendo o aspecto sutil dentro de uma liberdade maior do que o próprio aspecto sutil. Eu o estou descrevendo dentro da perspectiva da vacuidade, que é o início do aspecto secreto.
Vão surgir as noções de complexidade e de complementaridade, que são noções contemporâneas. A complementaridade, junto com a complexidade – são muito parecidas – tratam do fato de que as diferentes realidades em que estamos operando não são excludentes: são verdades que enriquecem as visões mais amplas. Por exemplo, os seres humanos têm uma visão sobre a natureza, os cachorros têm outra, os pássaros e os peixes têm outras. Vemos que cada um está operando de um certo jeito, mas os cachorros, os pássaros e os peixes não estão errados. Operam dentro de realidades que funcionam adequadamente na visão deles.
A compreensão de como o mundo funciona fica mais fácil e muito mais ampla se eu for capaz de visitar as várias realidades dos diferentes seres que estão operando ali dentro, em vez de simplesmente olhar pela perspectiva humana, muito limitada. É como se eu olhasse pela perspectiva dos golfinhos ou das baleias, ou dos cachorros ou gatos. Se eu tomar só uma, é muito limitado. Mas as múltiplas visões se interconectam numa visão muito complexa, que inclui as visões parciais dos diversos seres, em seus ambientes. Essa perspectiva é muito interessante. A complexidade é essencial nos estudos antropológicos, por exemplo. Entre os seres humanos vamos encontrar muitas visões diferentes – diversas formas de olhar a própria realidade e jeitos de se comportar.
Na época atual, as gerações subsequentes já não copiam os pais. Houve um tempo em que os filhos aprendiam com os pais, copiavam-nos e preservavam sua forma de viver. Hoje os filhos nascem em um mundo muito diferente do mundo em que nasceram seus pais e, eventualmente, diferente também do mundo em que os pais viveram ou mesmo vivem. Então, os filhos não reconhecem o mundo em que os pais vivem como se fosse viável, adequado ou correto, e geram mundos próprios. Quando entendemos isso, podemos entender a complementaridade como algo importante: os pais têm os seus mundos, os filhos têm os seus mundos, e podemos olhá-los, cada um dentro de suas próprias perspectivas, e entender como aquilo pode operar e funcionar, para o bem ou para o mal. Como cada um está preso na sua própria visão – que tem uma interface, uma interconexão, mas não são os mesmos mundos. A complementaridade nos ajuda a estabelecer diálogos com os vários ambientes.
A ciência, associada à filosofia natural, tende a encontrar leis que regem todos os seres. No âmbito da ciência, a complementaridade ultrapassa isso, porque ela observa que as próprias leis não precisam ser universais. Dentro dos vários sistemas temos leis que regem aquilo e aparentemente produzem aquela realidade. Mas tais leis não são separáveis das estruturas usadas para pensar as realidades. Estão submetidas aos pressupostos em que estamos operando e às visões sutis de mundo usadas para pensar sobre as realidades. Esse ponto possibilita a migração da ciência associada à filosofia natural – que busca uma única visão para todas as coisas – para a ciência associada ao pensamento complementar, que é muito mais ampla. Na visão da ciência operando a partir da visão complementar as realidades podem ser distintas umas das outras, sem uma sensação de perda de realidade de umas em relação às outras.
Isso significa que estamos olhando as realidades sutis – que, por sua vez, geram a experiência das realidades grosseiras – como ação de uma realidade secreta, de um aspecto cuja base é a vacuidade e luminosidade, que possibilitam o surgimento dos aspectos sutis. Os aspectos sutis se originam nessa região de liberdade.
Saúde mental e emocional na perspectiva budista
Quando vamos falar sobre saúde mental e emocional precisamos desse quadro, caso contrário não conseguimos trabalhar isso na perspectiva budista. Temos que entender que as pessoas, operando nos seus mundos na perspectiva grosseira, com suas identidades e seus impulsos, o fazem por carmas e méritos que não percebem. Esses carmas e méritos vêm de visões de mundo – que elas também não percebem – a partir dos doze elos da originação dependente, que, junto com a estrutura de carmas e méritos, também não são fixos, e brotam a partir da liberdade natural da visão secreta. Esse aspecto natural produz a sustentação da visão.
Os seres não encontrarão nenhuma solução final na perspectiva grosseira, nem na sutil. A superação dos obstáculos verdadeiros só virá na perspectiva secreta, especialmente se desenvolverem a habilidade de Zangtal, que é a abertura que penetra todas as coisas. A abertura de ver as realidades operando nos vários modos, integrá-las e aceitá-las. Vê-las na sua limitação e no seu mérito, na sua capacidade de atribuir realidade, e daquela realidade operar de modo objetivo.Essa é a visão budista da realidade onde estamos operando.
A visão dos três aspectos para poder ajudar os seres
Quem é praticante budista e tem a motivação de reduzir o sofrimento dos seres humanos precisaria desenvolver a visão dos aspectos grosseiro, sutil e secreto, e dessa base olhar para as várias circunstâncias em que vai focar. Os seres estão operando dentro de aspectos limitados, aspectos que não são sempre os mesmos; cada ser opera dentro de uma limitação e de uma abrangência. Precisamos entender onde se está e ajudá-los a ampliar a visão e, progressivamente, estabelecer liberdade diante dessas limitações. Assim vamos entender o que os mestres desde sempre fizeram: estão sempre operando dentro dessa perspectiva. O Buda fez isso, todos os budas e bodisatvas fazem isso, não é outra coisa.
De acordo com o caminho e a busca de beneficiar, de algum modo, os seres, terminamos privilegiando certos ensinamentos em uma época, outros em outra época, e vamos andando. Temos estabelecido a ênfase no Prajnaparamita, que é uma interface do mundo grosseiro com o mundo sutil – entendendo o aspecto grosseiro a partir do aspecto sutil, e entendendo o aspecto sutil na conexão com o aspecto secreto. O Prajnaparamita abre Zangtal desde a perspectiva da vacuidade.
Zangtal e Prajnaparamita
É interessante entendermos que existe uma diferença entre Zangtal e Prajnaparamita. O Prajnaparamita, em princípio, abre a visão desde a perspectiva grosseira e sutil, porque vai falar de forma, sensação, percepção, formação mental e consciência. Começa pelas aparências – vai falar de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato – focando aspectos grosseiros e sutis; transforma isso numa visão sutil, e transforma a visão sutil na visão secreta.
O Prajnaparamita começa pelo aspecto grosseiro das aparências. Já quando olhamos os ensinamentos da Iluminação da Sabedoria Primordial desenvolvemos visão, nos estabelecemos sobre a grande vacuidade, e da grande vacuidade olhamos todas as coisas. Já o Zangtal começa da grande abertura. É como se estivéssemos explicando e focando nas mesmas coisas, porém desde essa grande abertura.
O Prajnaparamita também está operando desde Zangtal – ele é a descrição da grande abertura – mas não foca na grande abertura, e sim nas aparências: forma, sensação, percepção, formação mental e consciência; olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente; na ignorância e nos elos subsequentes até velhice e morte; extinção da velhice e morte. Está olhando aparências relativamente comuns. Mas o verdadeiro ensinamento do Prajnaparamita é Zangtal, a grande abertura, quando vai descrever, em uma pequena parte, que os bodisatvas mahasattvas repousam na confiança nessa abertura. Ele dá essa dica.
O Prajnaparamita faz essa interface, atravessa de uma margem a outra. Começamos na margem do sofrimento, onde aquilo parece real, e vamos para a outra margem. Só é possível fazer essa transição se estivermos dentro da grande abertura. Mas no Prajnaparamita o objeto do foco não é a grande abertura, e sim a transição entre as aparências comuns e a grande vacuidade. Tudo isso pertence ao mesmo fluxo de lucidez, sem separação.
O adoecimento mental e emocional a partir dos Doze Elos
Precisamos ter essa visão para poder penetrar no mundo do adoecimento e sofrimento dos seres, no nível grosseiro. Precisamos olhar o adoecimento mental e emocional na perspectiva budista, como algo que surge dos doze elos, porque a nossa operação mental está ligada aos doze elos. Se formos olhar o nosso funcionamento a partir dos órgãos dos sentidos, é como se a gente pegasse os doze elos já no quinto elo. Quando temos os órgãos do sentidos, a ignorância vai se estabelecer de um modo muito claro, como uma sala cheia de janelas. Temos a impressão de que as paredes impedem a visão, mas, através das janelas, nós vemos.
O quinto elo, Shadayatana, é descrito assim porque não precisamos dos olhos para observar os aspectos grosseiro, sutil e secreto na sua profundidade completa; mas se eu quiser estabelecer relações causais comuns, preciso de olhos, ouvidos, nariz, língua, e tato, e da mente associada a olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Por isso tenho a sensação de que quando olho pela janela eu vejo, porque o que estou vendo se refere aos aspectos grosseiros. Se eu não tiver a operação dos sentidos físicos, não consigo ver os aspectos grosseiros, que são a essência das visões cármicas associadas à minha identidade.
Quando olho pelas janelas vejo a névoa da minha mente; mas penso que é a visão: “Oh, eu vejo!” A visão que surge desse modo é a própria descrição da ignorância. Porque vejo desse modo, ele me satisfaz e parece suficiente: “Está tudo OK, posso ter os impulsos que tiver, tenho certeza, eu sei como é que é!” Faço minhas ações, trucido tudo, não consigo ter visões mais complexas e vamos seguindo. O resultado disso é a crise ecológica, vamos destruindo as coisas em todas as direções.
Na sequência, essa limitação vai ser descrita como o sexto elo, Sparsha, a sensação de realidade que brota da operação dos sentidos físicos. Todos os seres têm essa sensação. Daí surge o sétimo elo, Vedana: gostamos de algumas coisas e não gostamos de outras. Isso parece ser uma superinteligência, os pais a ensinam aos filhos e vão filtrando tudo por gostar ou não gostar. Isso é Vedana. Uma vez que eles gostam, vêm desejo, apego e rejeição – surge Trishna, o oitavo elo. Todos os seres operam desse modo: abrem os olhos e é natural, veem tudo como se fosse verdadeiro; então experimentam e daí gostam ou não gostam. Do que gostam, querem e do que não gostam, não querem. Nossos filhos levam muito tempo para poder ultrapassar os limites do gostar e o não gostar de coisas muito simples.
A partir de gostar e não gostar vem Upadana, o nono elo. No budismo, especialmente na tradição páli, Upadana é considerado um dos graves problemas, porque corresponde às ações volitivas. Ou seja, tendo todas essas tendências, vou fazer ações de um certo tipo, ações que são infindáveis. Estarei sempre acumulando coisas em uma direção e evitando outras, e isso dá um sentido de realidade para a vida. A pessoa está ali dentro.
Mas não é só o que a pessoa está fazendo. Ela está dentro de um quadro de desenho de realidade, como se fosse verdadeiro, real, e se move desse modo. Quando tem êxito no meio disso, tem uma sensação de existência: olha em volta, vê o mundo de um certo modo e sente-se alguém que realmente entende as coisas como são. Já está no décimo elo, Bhava, o surgimento da identidade. Também está no décimo-primeiro elo, Jeti, sua operação em meio ao mundo. É como um jovem que pôs a mochila nas costas, deu tchau para os pais e foi para o mundo. A pessoa filtra a realidade a partir de gostar ou não gostar, a partir das suas visões, e vai indo. Esse é o décimo primeiro elo.
Este elo é sucedido pelo décimo segundo, ou seja, a pessoa nunca dá certo. Esse processo nunca termina: a pessoa vai ajustando, trocando e trocando, vai se desenergizando, envelhecendo e adivinha: “Como o pessoal aqui já morreu, acho que a minha hora também vai chegar.” A pessoa entende que isso é real, e morre. Esse é o décimo segundo elo, Jana Marana.
É mais difícil para a pessoa entender que a morte não é o fim, pois não tendo uma compreensão sutil e secreta, vê apenas o aspecto grosseiro. Não entende o que sustentou aquele corpo grosseiro durante todo o tempo. O mistério da morte se estabelece, o fato de que a vida desapareceu do corpo, e o corpo vai se degradar. No entanto, os órgãos estão vivos – podem ser retirados e levados para outro corpo, funcionam num outro corpo. O que faz um órgão de um corpo morto, que vai apodrecer, ser levado para outro ser e ali seguir vivo, quando aquilo não era mais possível no ser original ? Qual é a diferença, o que há ali? Então vamos descobrir que a vida não é aquelas células, a vida é outra coisa que pulsa no meio daquilo. Vamos entender que essa vida está ligada ao fluxo da energia, outra coisa sutil que não tínhamos considerado ainda.
Na perspectiva budista, o aspecto dos doze elos é crucial para entender o nosso funcionamento. Algumas pessoas estão focando o elo em que estão – por exemplo, estão no décimo primeiro elo, focando as suas ações, e não entendem nada dos elos anteriores; muito menos o primeiro elo, que é a ignorância. Não têm a compreensão do aspecto sutil de suas próprias vidas. Operam através dos vários impulsos e funcionam assim. Na perspectiva budista, isso já é adoecimento mental, ainda que a pessoa esteja fazendo tudo certinho. Esse adoecimento mental vai levar ao desânimo, à sensação de tristeza e depressão que surgem no décimo-primeiro elo e se intensificam no décimo segundo elo, quando a morte se aproxima.
Visão ampla ao ajudar as pessoas
Mas enquanto a pessoa vive isso no aspecto grosseiro – ou seja, a maioria dos seres – não vê a realidade mais profunda da situação. Vê só o aspecto ilusório e, não entendendo, descreve tudo em primeira pessoa: “Estou desanimado, não vejo saída, não estou gostando.” Descreve tudo em primeira pessoa, onde a linguagem do impulso parece fazer sentido. A pessoa não olha de forma mais ampla. Faz tudo convergir para uma experiência como se fosse individual, da própria identidade. Eventualmente, vai sentir-se em adoecimento mental, emocional e físico e vai pedir ajuda, dizer: “Eu isso, eu aquilo…” São os impulsos, as próprias visões limitadas que a pessoa ouve de si mesma. Se pretendemos ajudar as pessoas, precisamos ajudá-las a partir do que são capazes de ver, a partir daquele ponto, mas não deveríamos perder a visão mais ampla.
Aqui, se quisermos aprofundar um pouco a própria experiência da pessoa, precisamos entender que quando está descrevendo suas coisas, está dentro de bolhas de realidade que pode não perceber e, de modo geral, não percebe. Está dentro de um tipo de bolha que dá origem ao movimento da própria energia, ao movimento da compreensão das realidades e que dá também realidade à própria estrutura cármica. Por exemplo, uma bolha fácil de reconhecer é quando a pessoa está presa a campeonatos de futebol, e pensa que isso é muito importante. Tal importância corresponde à bolha. Vamos vendo múltiplas bolhas em todas as direções, e ainda que possam ser muitas, sempre operamos a partir de bolhas. Nos processos de adoecimento mental e emocional, por vezes começamos a manifestar sofrimento vindo das próprias bolhas, e não percebemos.
O sofrimento mental enquanto flutuações das identidades em meio às bolhas
Neste tempo em que estamos vivendo agora, as bolhas estão em processo de fragmentação. Já faz um ano que não sabemos como resultará a pandemia, como será a nossa vida pós-pandemia. Há pessoas pensando de formas muito diferentes. Tem gente dizendo que será como a gripe, que teremos que tomar uma vacina por ano. Que se tornará uma doença permanente: estaremos sempre lidando com o Covid e vamos gerar um processo de funcionamento. Outras pessoas olham de forma muito ampla, pensando em fazer a refundação das relações planetárias. Prepara-se o Fórum Social Mundial olhando esse aspecto: eles vão propor uma espécie de refundação, como se fosse uma reprogramação do sistema, considerando que agora precisamos proteger a natureza, proteger de fato os seres humanos, criar um desenvolvimento que não seja predatório. Vamos aproveitar o fato desse problema grave, que parou tudo, para reiniciar de uma forma melhor, onde se consiga trabalhar com estruturas política e econômica protetoras, etc.
Outras pessoas estão pensando em ir viajar, ir ao restaurante, ao shopping, querem a normalidade. Sendo que, na visão de Pierre Weil, a normalidade é a normose: uma doença em que seguimos, numa aparente normalidade, em direção a um grave problema. Nós já estamos vivendo os sintomas graves da própria normose.
Aqui estou convergindo a linguagem para a noção das bolhas. Operamos a partir de bolhas e podemos gerar várias bolhas. Que bolha vamos fazer e tornar respeitável ao final da pandemia? Teremos que fundar uma bolha, um tipo de realidade, a partir da qual as coisas se organizam. Se não tivermos uma boa bolha, as coisas vão andar setorizadas, flutuando.
Por outro lado, as pessoas não sabem por quanto tempo irão viver, porque os parentes estão morrendo, pessoas conhecidas estão morrendo. É o que se vê todo dia na nossa prática. As bolhas, que dariam alguma segurança para nós, estão se fragmentando. Isso está produzindo, por exemplo, os órfãos da pandemia, crianças que estão tendo que morar com outros adultos porque os pais se foram. Isso é super grave, triste, aflitivo. É natural que haja flutuação da base das bolhas e uma mescla entre bolhas. As pessoas olham um tipo de realidade e misturam com outro tipo, e constroem bolhas flutuantes, de curto alcance, e se comportam por dentro disso, um pouco aflitas.
Esses processos estão acrescidos da criação de referenciais artificiais de curta duração, realidades fake espantosas, porque estão movimentando pessoas eventualmente educadas, com recursos. Elas começam a ter comportamentos aleatórios, surgem visões apocalípticas, mundos paralelos, vozes internas, imagens messiânicas, sensações de perseguição ou de grandes oportunidades. As pessoas ficam perturbadas e isso produz flutuações de base que têm, imediatamente, um reflexo emocional sobre o comportamento. Vemos as pessoas se matando, ou fazendo coisas muito aflitivas. A violência doméstica é um exemplo disso.
Aqui, temos o sofrimento mental enquanto flutuações das identidades em meio às bolhas, porque quando as bolhas mudam, os impulsos mudam. Os pés das identidades estão nas bolhas e de lá eles pulam, de lá surge esse movimento. É natural que, nesse tempo, haja sofrimento físico e mental, sofrimento das identidades. Um número muito grande de pessoas está passando pela situação de ver os entes queridos não poderem ser atendidos nos hospitais e, eventualmente, morrerem. Há muitas pessoas se queixando, doloridas de não poderem nem se despedir ou fazer uma cerimônia fúnebre para os entes queridos.
Recuperando o equilíbrio no aspecto grosseiro
Como o Darma do Buda pode ajudar nessas circunstâncias? Em uma perspectiva, ajudaríamos as pessoas a recuperar o equilíbrio no nível grosseiro, sutil e secreto. No nível grosseiro, o conselho geral clássico do Buda, para qualquer tempo e em qualquer circunstância, é gerar méritos e evitar gerar carmas. Esse conselho dirige-se aos praticantes, que entendem essa linguagem. Se estamos feridos e atingidos pelas coisas, entendemos que muitos seres também foram atingidos. Uma vez que não conseguimos proteger os nossos queridos porque já foram atingidos, podemos talvez proteger outros, que ainda não foram atingidos. Podemos canalizar nossa energia de forma positiva, ajudando os outros seres que estão fragilizados. Isso é muito importante. Por exemplo, ajudar a UNICEF, Médicos Sem Fronteiras… Acho comovente o esforço deles de ajudar pessoas nos vários ambientes. Estão em campanhas permanentes de buscar ajuda. Essa é uma forma de nós, de algum modo, nos engajarmos. Quem puder fazer isso, será uma boa coisa.
É importante, também, disponibilizar alimentos, cestas básicas para as pessoas. Várias organizações estão fazendo distribuição de cestas básicas, porque as pessoas estão se defrontando com a fome; a situação econômica foi afetada e não há uma perspectiva rápida para resolver isso. Podemos gerar méritos nesse nível grosseiro.
Evitar carmas significa evitar ações negativas, entristecimento, depressão, desânimo, a nível pessoal. No nível mais amplo, evitar estabelecer relações negativas em várias direções, evitar o discurso de ódio e agressões. É importante substituir isso pela geração de méritos.
Recuperando o equilíbrio no aspecto sutil
No aspecto sutil, por base, o que vai possibilitar gerar mérito e evitar carmas? Transitar das seis emoções perturbadoras (orgulho, inveja, desejo/apego, desânimo/desinteresse, carência e raiva/rancor/ódio) para atuar a partir das Quatro Qualidades Incomensuráveis e das Seis Perfeições (compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante, concentração e sabedoria). Substituímos um tipo de ação por outra. É evidente que, se formos explicar isso para a maior parte das pessoas, não vai funcionar. Precisamos de meios hábeis para explicar e ajudar com exemplos, ensinando pelas costas. As Quatro Qualidades Incomensuráveis e as Seis Perfeições são uma base para que se possa gerar mérito e evitar carmas. Se estamos movidos pelas Quatro Qualidades Incomensuráveis, vamos gerar méritos naturalmente, proteger as pessoas e evitar carmas. Isso é muito importante.
O equilíbrio no aspecto secreto
O aspecto sutil substitui as bolhas, e serve de base para gerarmos ações meritórias efetivas no nível grosseiro. Já as ações no nível sutil brotam da natural liberdade. A compreensão da natural liberdade é o aspecto secreto, que vai nos permitir entender a vacuidade das aparências e de todos os referenciais. Entendendo o aspecto luminoso, entendemos que, se estamos fazendo ações negativas ou positivas, o aspecto luminoso está presente.
Mesmo que as pessoas estejam fazendo ações muito negativas, elas têm a natureza luminosa dentro delas, vivem além das vidas que estão manifestando, têm a natureza búdica e podem ser alcançadas. Se no tempo presente não for possível, em um tempo futuro elas inevitavelmente podem ser alcançadas pelos budas e bodisatvas, de tal modo que entendam a natureza delas, que está além de vida e morte. Mesmo que as pessoas não entendam isso agora, já estão além de vida e morte. A compreensão do aspecto secreto nos dá serenidade diante da vida e diante da morte, nos dá a capacidade de ajudar os seres mesmo que eles estejam desesperados e pensem que não há solução. Entendemos que a vida deles pulsa além de vida e morte, e é algo muito mais profundo. Essa compreensão calma vem justamente do aspecto secreto, da natural perfeição de todas as aparências.
Se quisermos ajudar as pessoas a desenvolver qualidades melhores, podemos induzir a calma de suas mentes através da própria meditação. É muito importante que as pessoas possam ser introduzidas aos ensinamentos do Satipatthana Sutra, de algum modo, mesmo que não precisem ouvir a palavra Satipatthana. Podem ser convidadas a inspirar e a expirar calmamente, de forma natural, e entender quando se está inspirando mais longo e mais curto, e observar isso. Esse processo é crucial, porque produz um distanciamento entre a lucidez e nossa operação aflitiva. Começamos a nos tornar independentes e a gerar uma lucidez independente dos processos aflitivos.
Todos os processos aflitivos oscilam com a respiração. Nós contemplamos isso e vemos que existe uma região calma, capaz de nos ver aflitos e de nos ver bem. Existe essa região calma a partir da qual podemos contemplar a respiração, as emoções, o corpo, as várias partes do corpo, e vamos ganhando esse progressivo distanciamento entre a região lúcida e os fenômenos grosseiros que flutuam. A calma da mente vem disso, da capacidade de distanciamento, e gera uma ação mental de estabilidade sem produzir nenhuma tensão na busca de uma estabilidade tensa. Calmamente, ganhamos a estabilidade por esse distanciamento.
Se pudermos fazer isso, está bem. Se não pudermos, podemos utilizar o próprio corpo como base dessa prática; através de exercícios e relaxamento podemos ganhar alguma liberdade e estabilidade da mente, sem tensão.
Outra possibilidade adicional – se possível, a praticar junto com as outras – é acalmar o entorno onde estamos, a própria bolha. Como as pessoas não entendem que o entorno é a bolha, não precisamos quebrar a sensação de bolha. Podemos ajudá-las a praticar Metabavana em relação a todos os seres que pertencem ao seu mundo, porque o mundo mental onde operamos está povoado de seres, coemergentes com nossa própria mente. Se pudermos, devemos olhar os seres e incluir o céu e as montanhas, e também olhar o mundo humano, os nossos filhos, pais, marido, esposa, as pessoas que encontramos nos vários lugares. Que possamos entender que estão em dificuldades, e aspirar que superem o sofrimento, encontrem a felicidade e as causas da felicidade, se livrem das causas do sofrimento. Entendemos que, como nós, eles também estão armadilhados, e acalmamos o entorno. Se essa visão se estabelece, já gera méritos e evita carmas, nos induz a boas ações e a não criar sofrimento, e melhora muito nossas vidas.
Grande Compaixão
Podemos, também, reconhecer a situação estratégica dos seres e desenvolver a compaixão em uma visão mais ampla, que seria a Grande Compaixão. Entender que os seres estão em uma situação inevitável, vivendo a impermanência, a fragilidade, a ausência de direção, se iludem facilmente com felicidade e sofrimento, estão presos a dukkha e acreditam que têm estruturas de identidades reais. Se dissermos essas palavras para eles, só complicaremos, mas precisamos ter isso em mente, de alguma maneira, para ajudá-los a entender de forma mais ampla. Quando operamos desse modo, aliviamos o ambiente ao redor, e isso vai promover uma melhoria no que diz respeito ao sofrimento e adoecimento, no nível emocional e físico.
Quando o nível emocional se perturba, inevitavelmente há o adoecimento físico, porque o nível emocional está diretamente relacionado com o funcionamento da energia por dentro do corpo. Ele comanda a respiração e vários fluxos de gotas – como se diz no budismo – secreções glandulares que operam por dentro do corpo. Tudo opera ligado às emoções, às visões de mundo, às bolhas. A sensação das bolhas produz imediatamente alterações no corpo. Percepções aflitivas de um certo tipo constantes, que se estabelecem como bolhas de realidade, vão produzir configurações no corpo – inicialmente na energia e depois na própria manifestação física do corpo. Na visão budista, o nosso próprio corpo é uma situação cármica. Foi justamente a perturbação da mente e da energia que desenvolveu o corpo desse modo. A manifestação física é a expressão direta do carma sutil no nível grosseiro, e é sustentada pela energia vital, que é inseparável do aspecto secreto. Quando a energia vital, inseparável do aspecto secreto, sucumbe, o próprio corpo cármico se desfaz. É importante que entendamos isso. Essa é a situação de todos os seres. Esse processo é tão íntimo quanto isso.
O Buda nos convida a movimentar a nossa energia de um modo que não seja cármico, que venha diretamente da energia primordial. A energia cármica passa pelos vários condicionantes, surge por dentro dos condicionantes. Dizemos: “Chocolate!” e os olhos de todos brilham. Isso é a energia cármica. Mas esse brilho não precisa vir pelo chocolate, ele é o brilho – pode vir direto da natureza primordial. Se vocês se sentarem em meditação e ampliarem esse brilho, como o Buda vai explicar, ficarão imunes às flutuações cármicas, aos movimentos de energia que vêm por dentro dos condicionantes ligados ao corpo e aos aspectos sutis. Esse movimento de energia por dentro dos condicionantes é muito menos intenso do que a energia que possa brotar direto da sabedoria primordial.
No sentido último de saúde de corpo e mente, estamos operando a partir do aspecto secreto juntamente com a própria energia, que é autônoma e brota do próprio aspecto secreto.
Transcrição: Clarissa Gleich
Edição e revisão: Joana Braga, Cláudia Laux, Stela Santin