Budismo, meditação e cultura de paz | Lama Padma Samten

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Como lidar com a culpa?


Pergunta: Como lidar com a culpa de não estar praticando tanto quanto eu gostaria e de estar sendo levado pelos impulsos?
Lama Samten: Na tradição budista, a culpa não se apresenta. Às vezes aquilo se recoloca, “mas eu tenho culpa”. Eu ouvi do Chagdud Rinpoche: “o único mérito da culpa é a gente decidir não fazer daquele modo”, ou seja, reforçar nossa intenção de não fazer algo e fazer alguma coisa melhor. Só isso! Eu vejo a culpa como um problema, realmente. Porque ela significa o quê? A culpa é uma forma de indexação pessoal: tu reconstrói uma identidade a partir da culpa. É melhor dizer: “não, aquilo que aconteceu foi um lapso, aquilo foi o produto de uma bolha que surgiu e produziu a sensação de realidade e aquilo foi feito. Eu não tenho garantia que eu não vá entrar nessa bolha de novo e fazer a mesma coisa, não tenho. Mas aquilo foi uma bolha, não fui eu. Eu nego. Se os outros quiserem me condenar por isso, não tem problema nenhum, podem me condenar. Mas o carma deles vai pesar, porque não fui eu”. (Risos). E não é que pesa mesmo? Por exemplo, o olhar que condena o outro porque o outro fez isso ou aquilo pesa sobre nós! Por quê? Por que quando nós fizermos alguma coisa negativa, a gente não vai conseguir escapar, porque nós geramos uma mente culpadora dos outros. Depois essa mente se vira com o mesmo valor sobre nós e nós sentimos culpa. Mesmo que a pessoa diga: “não, não fui eu, não foi nada”, a pessoa se sente mal, carmicamente ela se sente mal, ela está presa à identidade dela. Quando ela fixa o outro na identidade do outro, ela se prende à sua própria identidade. Isso significa que ela vai para os infernos. Então, culpar o outro é uma coisa muito perigosa para nós! Se não trabalhamos com a culpa, fazemos o quê? A gente refaz o voto. A gente não está indo muito bem, mas a gente refaz os votos e tenta fazer melhor.
A gente precisa entender que nós estamos dentro do samsara, enquanto nós estamos dentro do samsara nós vamos fazendo coisas erradas. É assim! Nós vamos caminhando no terreno das coisas equivocadas, mas nós vamos andando numa direção positiva! É como aquele caminho que sai do centro da Roda da Vida em direção a Amitaba fora da Roda da Vida. Porém, ele está por dentro da Roda da Vida! Ele vai andando por dentro da Roda da Vida. Então, vamos supor, se a pessoa está dentro do Reino dos Deuses, ela vai caminhar por dentro do Reino dos Deuses. São essas contradições do caminho. Vamos supor: alguém do movimento ecológico vivendo na sociedade hoje. A pessoa critica o movimento ecológico e vai ao supermercado comprar coisas contaminadas, botar lixo pra rua… Não tem como fazer de outro jeito! Ela está dentro do samsara. Não tem como evitar isso. Ou então, a pessoa considera que todos os seres são iguais, etcetera, mas, enfim, ela está dentro de um ambiente que não é fácil considerar essa igualdade. Então, ela protege os seus filhos em detrimento das outras crianças, ela tem uma série de comportamentos desse tipo. É isso. Mas nós vamos caminhando ali por dentro, apesar de haver essa contradição entre as nossas coisas, ela não impede que a gente vá avançando. A gente refaz os votos e vai melhorando o que a gente vai fazendo. Mas se a gente pretender ser uma coisa exata, nós vamos para os infernos. Nós vamos passar mal. Se a gente pretende cobrar do outro uma perfeição, a gente vai para os infernos. Quando eu digo vai para os infernos, não é assim: agora vem um demônio e me pega e me arrasta e eu “não! Não!” Não é isso. Ir para os infernos é assim: eu fico suscetível ao sofrimento correspondente àquela estrutura cármica.

Se eu julgo o outro, eu crio internamente o julgador e os seus padrões. Esse julgador e seus padrões é o que vai me torturar mais adiante, essa estrutura interna minha vai me torturar.

Na visão budista não tem os infernos enquanto um lugar, nem um regente, não tem nada disso. Vacuidade é a visão maior, mas isso não quer dizer que eu não tenha sofrimentos ilusórios. Como é que os sofrimentos ilusórios são montados? Por estruturas fixas! Como é que essas estruturas fixas aparecem? Elas aparecem de muitos modos, um dos modos é a gente julgar e condenar os outros. Isso produz uma estrutura fixa em nós. Então, é super importante manter essa capacidade de reconhecer que o outro tem uma natureza livre, ele está se manifestando daquele modo, dentro daquela bolha, aquilo não é interessante; nós podemos interagir dentro daquela bolha, mas nós não prendemos o outro dentro da bolha nem colocamos o outro dentro da bolha. Aquilo é construído. Nós temos uma base ampla. Isso é um aspecto que pode parecer benigno. E é! Mas não é um benigno dentro da bolha, é uma outra coisa. Isso não é, por exemplo, piedade. Isso é compaixão. Compaixão inclui a liberação do outro. A visão do outro livre.
Comentário do aluno: Parece que é um pouco paradoxal: seguir uma estrutura certinha e ao mesmo tempo ir deixando as coisas mais soltas. Parece que se a gente soltar muito a gente pode perder um pouco o propósito.
Mas esse paradoxo, na verdade, não existe. O que acontece é o seguinte: quando a gente está dentro da bolha, tem a lógica e a causalidade correspondente à bolha. Mas tu não pode tomar isso como se fosse o aspecto último! Mas tu não pode rejeitar também. Então, dentro da bolha é que os carmas se estruturam. Se tu sai da bolha os carmas desaparecem. Por exemplo, a pessoa é um colorado. Ela tem um sofrimento inerente, especialmente nesse tempo de agora (risos). Mas o sofrimento diz respeito à bolha! A pessoa faz outras coisas e ela não sofre por ser colorada. Ela só sofre por ser colorada porque vai pra dentro daquela bolha, aí ela tem o sofrimento. Por exemplo, quando a pessoa vai para a série A e torce pelo Grêmio, o sofrimento cessa. Então, é interessante isso, porque a estrutura cármica não é de alguém, é do personagem dentro da bolha!
Quando nós somos fixados dentro das bolhas e dos personagens, a gente vai dizer: “bom, esse é o meu carma!” Porque nós estamos num momento em que a gente não entende isso, não entende as bolhas, nem as identidades brotando dentro das bolhas. As estruturas cármicas não são de alguém, elas são estruturas que eu posso adotar e começar a operar a partir delas. É como, por exemplo, chegar num lugar e não ter aquele carma. Tu chega naquela bolha e tu opta. A pessoa, por exemplo, chega em São Paulo  ou Rio e pensa “deixa eu ver para que time eu vou torcer”? Então, se a pessoa não está naquela bolha, que sofrimento ela tem? É muito interessante.

Tatatha: dupla realidade

Esse é um ponto: como é que tu podes chegar num ambiente como esse do futebol, tu não estás na bolha, mas tu conversa sobre a bolha, mas tu não pertence àquela bolha! Esse ponto é super importante, nós precisamos disso, isso é chamado de Tathata, dupla realidade, existe a realidade convencional e existe a realidade absoluta. É assim, tu trabalhas nas duas. Mas uma não ofusca a outra. Se tu estiveres dentro da realidade convencional dizendo “ah, isso é vacuidade, vacuidade, vacuidade”, tu não consegues entender a outra pessoa! Por outro lado, se tu estiveres ali dentro tu ficas dizendo “bah que horrível! Uau, sem solução! Estamos perdidos!” Aí também não adianta, entendem? Tathata é isso: tu reconheces a realidade comum e ao mesmo tempo tu vês a liberação dela, ao mesmo tempo! Por quê? Porque existe uma coisa mais ampla, tu raciocinas desde uma base ampla. Está certo que só o Buda raciocina desde uma base primordial. Mas se a gente raciocinar dentro de uma base mais ampla, aquele sofrimento da bolha já meio que desaparece! Então, isso é que é necessário, trabalharmos com esses dois níveis. Não tem uma contradição entre esses níveis.
Na visão budista a gente diz: “enquanto eu sou isto, eu também sou uma outra coisa totalmente livre. Enquanto eu manifesto isso, eu tenho esses sofrimentos, eu tenho essa contradição inerente da minha ação que não é perfeita e eu causo sofrimento aos outros seres e os prejudico; enquanto isso acontece, tem uma natureza livre que é a minha base! Ela é que vai permitir eu me manifestar de outro modo. Então, no budismo a gente acredita especialmente nisto. Justo porque nós vamos mudando, não só através das vidas sucessivas, mas na mesma vida nós vamos trocando de posições, a gente vê que existe essa natureza. Aquele ser culpável é o ser que está dentro daquela bolha de realidade, daquele mundo específico surgindo daquele modo. Mas se ele está num outro contexto com outra bolha de realidade ele já não opera com aquela identidade e também já não tem culpas. Ele tem uma outra forma, ele não tem aquele sofrimento.
As culpas servem para que a gente possa sempre purificar. Quando a gente tem a sensação de culpa, o que a gente vai pegar daquilo? De novo a gente vai pensar: “eu tenho uma natureza livre, eu posso fazer diferente. O que eu fiz para trás eu não tenho mais como arrumar. Mas eu não preciso reproduzir o que eu vinha fazendo, eu posso fazer melhor”. Ainda assim, a gente pensa que pode fazer melhor, mas tem um limite dentro disso. A gente não consegue fazer qualquer coisa, porque tem as estruturas da nossa própria identidade na bolha onde a gente estiver andando, assim, aquilo tem um limite.Todos têm contradições dentro de suas bolhas e problemas. Então, a gente perdoa as pessoas e a gente perdoa a nós mesmos.
O filme do Ariano Suassuna, O Alto da Compadecida, trabalha a questão da culpa na perspectiva cristã. Tem um demônio pegando a pessoa e aparece a Compadecida que vai resolver aquilo. Ela é advogada de libertar o ser da culpa. E o ser é um malandro dos piores. Ele enrola o demônio com o apoio da Compadecida. Mas essencialmente o argumento é esse: “eu sou uma criatura! Olhe para mim, veja se eu tenho poder de criar até mesmo os aspectos negativos dentro de mim, eu não sou nada!” A Compadecida vai argumentar assim. E o demônio diz: “mas vai esvaziar o inferno desse jeito! Eu vou ficar inútil?” E ele fica inútil. Esse é um ponto bem interessante.
Na visão budista, o Ananda, que é um monge e grande discípulo do Buda, aprontou: ele gerou um tipo de sentimento e olhar perturbado e subiu ao quarto de uma menina. Quando ele volta diante do Buda, ele usa um argumento parecido com o da Compadecida. Ele diz: “abençoado, eu que ouvi seus ensinamentos, segui com muita fé tudo, o que nos seus ensinamentos não deu certo que houve esse problema?” Então, esse é um ponto super útil. Ele diz: “eu não sou nada! O Buda é tudo! Mas o que faltou aí do senhor que não deu certo?” (Risos) Eu acho isso uma preciosidade, porque a culpa também está na sensação de dizer “eu posso”! Nesse caso, é melhor a pessoa dizer “eu não posso, eu não sei de onde que veio a estrutura cármica, isso caiu como uma tragédia por cima de mim. Mas se tu quiser me culpar, me culpa, mas eu mesmo não me culpo, porque eu nem sei de onde é que veio isso! Eu não tenho esse poder. Se eu tivesse o poder de optar eu não faria, mas eu não tenho, eu sou enrolado! Então, vocês guardem isso que pode ser super útil em vários contextos! Vocês confessem “eu fiz tudo errado, mas não sei de onde que veio isso. Eu não sou isso! Mas na hora, aquilo foi assim!”
Esse é um ponto interessante, a pessoa não é aquilo, se manifesta como se fosse, ela não é propriamente culpável, mas ela pode passar pelas estruturas cármicas. Por exemplo, um cachorro que mordeu as crianças aqui. Ele não é isso, ele é um ser elevado, ele é inseparável de todos os Budas, ele tem a natureza livre, ele não está mordendo o tempo todo… Mas ele mordeu! E mordeu de novo e de novo, então é melhor entender que ele morde. Então, dentro da estrutura cármica, é melhor botá-lo num canil. Não que a gente diga: “você é um monstro!” Ele não é um monstro! Ele é um cachorro, ele tem uma estrutura cármica passageira, transitória, mas é melhor cuidar. Então, a gente pode fazer isso, mas a gente não está culpando, não está prendendo o outro àquilo, num sentido cármico. E também ele não manifesta aquilo o tempo todo. Por exemplo, os povos que vivem dentro da natureza, eles convivem com animais muito agressivos, convivem com seres dos mais variados, mas aqueles seres não estão sempre picando, se mordendo, matando. Eles não estão. Então, é importante entender a bolha onde o outro está operando.
As pessoas também não são monstros o tempo todo. É isso. E nós também. Nós não somos nem santos o tempo todo nem monstros o tempo todo. Nós surgimos como identidades cármicas nos vários lugares. Então, é melhor a gente guardar isso na mente. Nós não somos aquilo. O ponto central não é a rigidez do carma, é como eu produzo. Mas o aspecto de que o carma produz frutos, produz resultados, é visível. 
Ensinamento oferecido por Lama Padma Samten no Retiro de Inverno de 2017, em Viamão/RS (6º dia, manhã) 


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