Pergunta: Me sinto bastante perdida nessa questão do gostar, não gostar e ser indiferente. Não consigo evitar essa categorização, desejar ter mais do que gosto e menos do que não gosto. Me parece que tudo ficaria muito sem graça sem gostar das coisas, sem se alegrar em ver e sentir coisas que me agradam, e a ideia de iluminação fica cada vez mais distante para mim nesse contexto. Além disso, tem coisas que gostamos de fazer, que não prejudicam e podem até beneficiar os outros e a nós mesmos. Aí fico confusa e me culpando por gostar tanto de uma coisa. Por exemplo, se eu estiver gostando de estudar o budismo, desenhar, praticar algum esporte ou de fazer algum trabalho voluntário, se isso me deixa alegre e motivada, inclusive para fazer outras coisas, e talvez ainda possa ajudar alguém, por que eu não devo incentivar isso?
Resposta: Essencialmente, não é uma questão de gostar e não gostar. É a questão que está ligada ao apego. Então, se a gente estiver operando com gostar ou não gostar, mas tiver uma liberdade com relação ao gostar e não gostar, a gente pode sorrir até mesmo para esse gostar e não gostar. Então, o gostar e o não gostar são o foco da mente. A questão toda é a base da mente, o que que nós temos na base. Se, na base, tivermos os 12 elos, então gostamos e temos o apego correspondente. O Buda não é contra isso. Ele está aqui nos ajudando, porque se nós tivermos o apego correspondente, nós teremos o sofrimento correspondente. É isso que o Buda está olhando.
O apego corresponde à noção de refúgio. Nós temos alguma coisa que gostamos, se a gente se prender àquilo e transformar aquilo no nosso refúgio, na nossa segurança, nós estamos realmente numa posição muito frágil, porque essas circunstâncias são sempre transitórias. Então, quando o Buda olha a razão pela qual o sofrimento existe, ele vai encontrar esse sofrimento em desejo e apego, mas quando a buscamos ultrapassar o sofrimento, se imaginamos que ultrapassar o sofrimento é retirar as circunstâncias que produzem o sofrimento, isso não vai adiantar. O sofrimento surge de desejo e apego, propriamente. A gente precisaria mudar essa perspectiva da mente.
Guru Rinpoche, especialmente, vai trazer essa noção de que nós podemos viver as experiências. Mas o ponto é que deveríamos reconhecer o aspecto secreto sempre, nós deveríamos estar repousando na natureza livre da mente. Então, quando surgem as várias circunstâncias, podemos viver essas várias circunstâncias, mas a gente não se perde dentro delas porque o nosso refúgio é a natureza livre da mente, e não a natureza apegada, fixada a essas várias coisas. Os mestres que atingem a realização são denominados Herukas. Eles se movimentam bem no samsara e no nirvana. Eles não têm nenhum problema com o samsara. Por que eles não têm problema com o samsara? Porque eles não têm fixação. Se eles tiverem a fixação, então eles não têm a compreensão, eles não têm o refúgio, eles estão refugiados em coisas transitórias. Esse é o problema.
Minha sugestão é que tu tenhas essa experiência de felicidade, das causas da felicidade, e que tu guardes também o refúgio na natureza livre da mente, e não nas circunstâncias que aparentemente produzem a felicidade e, desse modo também, com relação ao sofrimento, que tu consigas te livrar das circunstâncias do sofrimento. Mas, quando elas surgirem, tu entendas que a natureza livre da mente não é alcançável propriamente pelo sofrimento. O sofrimento se exerce sobre as circunstâncias construídas, sobre as aparências construídas, sobre as nossas escolhas.
Então, o caminho seria o caminho de viver de um modo natural, de um modo livre, assim, mas com a profundidade da experiência de refúgio, o refúgio na natureza livre da mente.
Resposta do Lama Padma Samten no retiro de inverno de 2020 (vídeo aqui).
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Pergunta: Pelo que entendi, o principal problema de gostar de algo é o apego que ele gera sobre aquela coisa, seja pessoa, objeto ou atividade. Então, será que o lama poderia falar um pouco mais sobre como podemos administrar o nosso apego pelos nossos familiares ou amigos próximos mais amados? Pela minha pouca experiência, acho que meditar e contemplar a impermanência ajudam, mas ainda não tive acesso a muitos ensinamentos, e os que tive talvez não tenha compreendido bem. Então, ainda não sei como fazer isso direito mas, gostaria de descobrir logo. Muito obrigada pela oportunidade de te ouvir e interagir contigo! Me enxeu de energia, curiosidade e alegria com a possibilidade, mesmo que remota, de talvez um dia sair da ignorância.
Resposta: Para benefício de todos os seres!
O ponto do apego, né? Esse é um ponto interessante. É um ponto recorrente. Eu acho que o melhor é a gente seguir essa instrução do Buda no Satipatana, por exemplo. O Buda não diz “bandone o corpo”, ele diz “olhe o corpo como o corpo”. Ele não diz “abandone as sensações”, ele diz “olhe as sensações como sensações”.
Então, a minha sugestão é que ela olhe o apego como apego. Porque se a gente olhar o apego profundamente, isso vai produzir a liberação do apego. Essa é a minha sugestão. Quando ela olhar e entender bem como é a mecânica do apego, como é que o apego está operando, ela não precisa nem abandonar o apego, porque a clarificação com respeito ao apego já produz a liberação do apego. Como o Buda indicando no Satipatana: “Você contemple o corpo como corpo.” Quando começamos a contemplar o corpo desse modo, é porque não estamos mais respondendo de modo automatizado à própria experiência de corpo. A gente se coloca num lugar livre e começa a olhar. E vai olhando, olhando… Estamos olhando desde um lugar livre.
Do mesmo modo, se começarmos a olhar o apego, vamos, na verdade, migrando em direção ao lugar livre onde somos capazes de olhar o apego desse modo. Se o apego é olhado desse modo, ele perde o poder, mesmo sem deixar de ser o apego, mas ele perde o poder. Porque o poder das coisas é uma combinação da coisa com o lugar de onde nós olhamos. Para o apego ter poder, nós precisamos olhá-lo de dentro da bolha, nós precisamos estar dentro da bolha, operando, aí o apego vira poderoso. Mas se nós começarmos a olhar o apego, na verdade nos distanciamos do apego enquanto a gente olha. Aí ele vira alguma coisa, e nós descobrimos toda a operação complexa da mente que produz e sustenta e manifesta essa experiência. Mas, neste momento, nós já não estamos mais presos. É algo curioso porque olhamos profundamente e nos aproximamos do apego, mas quando a gente se aproxima do apego desde um lugar livre, o apego perde o poder, mas ele continua nítido.
Então, a minha sugestão é que não lute contra o apego, mas que tu olhes profundamente o apego dentro da experiência de apego. Isso mais adiante no budismo vajrayana vai ser chamado de abordagem tantrayana. Ou seja, não tiramos aquilo da nossa frente, nós olhamos aquilo mesmo. A experiência mesma se torna o foco de elucidação, de clarificação e libertação da própria experiência. A experiência mesmo. Não é pela negação da experiência, mas pela experiência mesmo que a gente vê isso.
Resposta do Lama Padma Samten no retiro de inverno de 2020 (vídeo aqui).