“Minha visão, essencialmente, é que estamos no samsara. Antes das eleições, estávamos no samsara; durante as eleições, também; posteriormente, continuamos no samsara. Assim, não deveríamos utilizar uma visão curta e a violência como método para as relações. Deveríamos evitar a noção de culpar pessoas.
Esta noção da não culpabilidade não é uma novidade: Hitler, por exemplo, pode ter tido ideias muito estranhas, mas teve 92% dos alemães apoiando ele. Forçado ou seduzido, de um jeito ou de outro, o povo votou nele. E aqui no Brasil é a mesma coisa: mais de cinquenta milhões de pessoas votaram por políticas em que, entre outras questões, as armas estão liberadas e a proteção ambiental ameaçada. O presidente eleito, ainda não empossado, é político há 28 anos; ele não mudou. A diferença é que as pessoas, agora, o apoiaram – esse é o fenômeno maior. É uma situação parecida com a dos Estados Unidos: o grande fenômeno é o fato de que as pessoas apoiaram esse tipo de política e, talvez, o atual presidente norte-americano seja até reeleito. Mas, como as pessoas estão com esse tipo de visão? Para mim, isto também não é nenhuma novidade.
Aqui, dentro do nosso país, eu considero que nos encontramos numa situação explosiva, pois a sociedade urbana é dependente de um processo de expansão constante da economia. Se isso não acontece, as gerações que estão na periferia urbana e que sonham em poder melhorar, chegam à conclusão de que não vão. E, quando eles se dão conta que não têm chance, o tecido social se rompe. E aí as pessoas se tornam capazes de fazer qualquer coisa, andar em qualquer direção. Eu considero que o desemprego elevado é o maior desafio que está acontecendo na Europa e em vários lugares. Não sei bem como a direita vai fazer aqui no Brasil, mas suspeito. Acho que o movimento de consolidar pela força militar os privilégios, as discrepâncias e as disparidades, e sustentar isso como se fosse a última guerra já está acontecendo.
Quando olhamos a situação brasileira, vejo que é muito difícil manter aqui um processo autoritário parecido com os de Mussolini e Hitler. Estudando o que aconteceu com estes, vemos que tinham um nível de articulação muito específico. Por exemplo, Hitler tinha palavras de ordem que não ouvimos por aqui. Ele falou para um povo que estava todo quebrado: “levante-se, Alemanha!”. E os alemães se levantaram. Havia, assim, uma política nacionalista. Diziam: “o marxismo divide o país, mas aqui todos são alemães; vamos trabalhar unidos e construir o país”. Ele fez trabalho social, e convocou cada um a fazer sua parte. Hitler criticou a política marxista, que trabalha com a luta de classes, em que uns se sentem vitimizados e lutam contra; a força fica, assim, fracionada.
Aqui no Brasil está tudo fracionado; não temos um espírito de nação para dizermos: “agora nos levantamos e vamos”. Aqui a política está contra as minorias, contra os índios, contra os pobres, contra os direitos disso e daquilo… Isso não vai prosperar, porque divide o país inteiro. Um processo divisivo não vai a lugar nenhum. O perigo verdadeiro para nós é sucumbir frente aos interesses externos. É irmos vendendo o que temos de valor aqui dentro e perdendo o controle sobre o que poderia ser usado para o nosso benefício – encontramos a corrupção fazendo isso! O Brasil estava mais ou menos rico com o Pré-Sal e com uma política interessante, mas houve também uma tal quantidade de desmandos, que aqueles recursos todos sumiram. Hoje, o Brasil está com um endividamento interno, apesar de ter uma reserva externa que ainda equilibra.
Olhando para a situação norte-americana, também entendemos assim: o Trump não é um Hitler – para o bem ou para o mal. Ele é divisivo; lá as pessoas se dividem, não se unem. Trump reina para uns e contra outros. Assim não adianta. Se em vez de dizer “America first”, ele dissesse “América, se levante, vamos acabar com a pobreza, com os problemas de saúde”… aí funcionaria! Mas, empreender a luta de uns contra outros não vai funcionar. Isso não vai andar; ele não vai conseguir. Ao invés de pregar “America first”, Trump poderia dizer: “Planeta, levante-se, vamos resolver o meio ambiente, vamos consertar tudo. Nós, norte-americanos, estamos aqui para ajudar e vocês também”.
Por exemplo, aqui no Brasil surgiu esse projeto de fundir o Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. Seria mais ou menos assim: quem vai cuidar das questões ambientais são os potenciais agressores. É colocar as raposas a cuidar das galinhas… Mas o próprio pessoal do agronegócio achou que não era uma boa ideia, porque eles precisam de uma imagem pública adequada. Acredito que nos próximos anos, em um tempo não muito longo, as pessoas que estão no agronegócio vão se tornar progressivamente mais informadas, vão entender que precisam equilibrar, que não podem simplesmente predar o meio ambiente. Isso é assim: se as pessoas que pescam baleias pescarem mais do que a capacidade de regeneração, o negócio deles vai terminar. Tudo tem um equilíbrio.
Na visão que vem da reflexão do movimento ecológico, o que acontece é que a terra está menos rica do que estava e, portanto, tem menos riquezas para oferecer. Dá mais trabalho para se coletar aquela riqueza. Se olharmos os mares, eles têm uma fração dos peixes que tinham, as florestas são uma fração do que existia. É tudo uma fração do que existia antes. Houve um período de expansão rápida em que os recursos eram abundantes. Na falta dos recursos, as disparidades das regiões se tornam um ponto crucial. Então, as pessoas começam a migrar e a se deslocar. Não há como conter isso.
A questão das migrações por razões ambientais, por guerras e outros motivos (grandes fluxos populacionais se deslocando de uma região para outra) não se resolve com uma política militar. Isso se resolve ajudando as pessoas a se fixarem nos lugares de onde estão vindo. Mas ninguém está entendendo isso. Está todo mundo olhando e achando que se resolve na bala. Em qualquer parte, acham que isso vai se resolver com forças militares. Mas não é assim, porque se forem agredidas, aquelas pessoas vão ficar muito mal – mulheres, crianças, famílias. A questão maior é: por que essas pessoas se levantam e começam a caminhar por uma estrada em direção a outro lugar? Por que se colocam em botes, pagam fortunas, tiram um dinheiro não se sabe de onde, entram com seus filhos em situações totalmente arriscadas para atravessar a Europa até chegarem onde não são bem-vindos – aliás, são expulsos! A política de primeiro mundo destrói a estrutura dos países dessas regiões. Esses países ficam destruídos, as pessoas ficam muito mal, não têm mais perspectivas e, obviamente, buscam um futuro fora.
Se olharmos os impérios da Antiguidade, eles protegem os dominados. Pensando nos impérios europeus mais antigos, o que nós encontramos, por exemplo, como resultado do domínio de Roma, em vários lugares, incluindo a Síria, são grandes construções, lugares que até hoje são reverenciados como locais de expressão cultural importantes. Eles trouxeram uma cultura e uma visão de mundo importante. Não foram lá para saquear aquilo tudo. Construíram e ordenaram o mundo segundo uma visão. Mesmo os impérios islâmicos eram assim. O império otomano respeitava a vastidão da sua área com todas as suas línguas, seus povos e religiões. Ele veio construindo estradas, melhorando a economia, protegendo uma região pela riqueza da outra e aquilo tudo foi andando… Assim eram os impérios da Antiguidade. Nos impérios modernos é que se chega lá, substitui-se uma cultura por outra, saqueia-se tudo, mata-se tudo, destroem-se os prédios e constroem-se outros no lugar… Isso é triste. Neste nosso tempo, os impérios são estranhos, de curta duração e com uma visão muito estreita.
Aqui no Brasil, na visão budista, a nossa perspectiva – do CEBB e do Instituto Caminho do Meio – é que nós, de fato, não temos inimigos. Quando as pessoas começam a olhar sob um ponto de vista de inimizade, isso é uma perda de tempo. O nosso adversário é Maharaja, é a ignorância, são os doze elos da originação dependente, as emoções perturbadoras. Quanto mais estreitas e tensas as ações, mais danos causam, mais infelicidade propiciam, mais resultados cármicos acontecem.
O que eu vejo que podemos fazer é essencialmente o mesmo que já estamos fazendo. Vamos estudando, meditando e vendo que esses movimentos coletivos estão perfeitamente explicados pelo giro da Roda da Vida, pelo aro dos três animais, pelas três emoções perturbadoras, pelos três venenos da mente. Há um giro natural, que não é de uma pessoa; é de uma população, uma visão de mundo que sobe e desce. É difícil puxar o freio de mão dessa visão de mundo enquanto se está andando. Mas ela tem um modo próprio, desce e depois sobe, e aquilo vai indo. Quando começa a subir, todo mundo pensa: Era de Aquário! Tudo ficou maravilhoso! Mas, aí, pode se preparar: o movimento hippie, por exemplo, deu origem aos yuppies. Os filhos dos hippies viraram yuppies super eficientes, com pastinha preta, terno, gravata, cabelo lambido com creme. Mas, e os banhos de cachoeira pelados? E o arroz integral? Passaram todos para hambúrguer, McDonald’s. Isso que é degradação…! [risos] É assim: fantástico e por movimentos coletivos. É interessante ver como a mente gira e ficamos presos a um conjunto de referenciais que emerge como se fosse uma realidade externa sólida.
Estamos neste tempo em que parece que certas coisas são possíveis, mas não são. Aquilo vai indo e, de repente, tudo descarrilha. Este é o ponto: não temos que combater nada. Só temos que segurar um pouco, antes que a coisa toda se desmanche na nossa frente. O maior risco do governo que vai assumir no dia 1º de janeiro é de ele desmanchar, porque ele não surge de um movimento maduro. As contradições vão aparecer e as ações não virtuosas produzem problemas, é inevitável. É necessário que haja algum nível de lucidez.
Penso também que o governo que vem tem pessoas hábeis que vão saber evitar os problemas maiores e andar de um jeito melhor do que os protagonistas principais têm anunciado. Eu vi dois discursos do futuro presidente: um primeiro, bem natural, bem problemático, em que ele disse um monte de bobagens; no segundo, quando enfim ele pegou um papel e leu e aquilo que disse estava coerente e sensato. Ou seja, tem alguém por trás; essas pessoas podem fazer as coisas andarem como devem andar.
Por aqui, nós estamos fazendo o trabalho certo. E, se não estivermos, mudamos. Estamos tentando fazer o nosso melhor, não tenho nenhuma dúvida. A nossa base é Chenrezig: cinco sabedorias, quatro formas de ação, quatro qualidades incomensuráveis, seis perfeições, meios hábeis variados. Consideramos a vida como um todo, e a multiplicidade das aparências da vida como manifestações da mente de Buda. Nós vamos nos movimentando em meio a isso. Não penso que vão surgir obstáculos econômicos, tecnológicos. O obstáculo somos nós mesmos. Então, as pessoas precisam refazer seus votos, aprofundar na meditação e nos estudos, ajudar aos outros, acolher como for possível, e se mover.”
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Este texto é um transcrição da resposta do Lama Padma Samten ao pedido da Bodisatva de um comentário seu a respeito deste período pós-eleitoral no Brasil, especialmente no que se refere à desesperança, medo e a difícil lida com conflitos na família e outros ambientes, causados pela polarização política. A resposta do Lama aconteceu durante os ensinamentos oferecidos no CEBB Caminho do Meio, em Viamão (RS), e transmitidos ao vivo em 30/10/2018, dois dias após a eleição de Jair Messias Bolsonaro (PSL) como futuro presidente do Brasil.
Transcrição: Bruna Crespo
Revisão: Rafaela Valença