Trecho de uma palestra proferida por Lama Padma Samten em 16/4/1998 no CEBB Menino Deus (antigo CEBB Porto Alegre)
Por que meditar? Tendo compreendido a impermanência e abandonado os objetivos correspondentes à Roda da Vida, entendemos que sem serenidade a sabedoria não é possível, por isto buscamos agora repousar naquilo que é estável. Buscamos estabilidade em corpo, fala e mente.
A primeira “âncora” é o próprio corpo. Apenas sentando imóveis já estamos removendo obstáculos que se interpõem à esta ação de imobilidade. Nesta etapa, a imobilidade por si mesma já é prática espiritual. A imobilidade nos tira parcialmente de samsara, se nos movemos é sinal que nossa mente tem um grau de agitação tal que a meditação pode não ter utilidade em um primeiro momento.
É comum que, quando estamos em nossas atividades, respondemos automaticamente a tudo que aparece. De acordo com as diferentes circunstâncias fazemos diferentes gestos.
A fala inclui a respiração e também as energias internas do corpo. Nesta etapa, “fala” significa respiração serena: inspirar e expirar serenamente, silenciosamente.
O terceiro é a mente que foca a respiração e a experiência de serenidade. Esta experiência de serenidade não é iluminação e nem liberação, é um método de treinamento. É a prática do tranqüilo repousar.
Podemos escolher um objeto para nos fixarmos. Sem isto, geralmente a mente vagueia, sem controle, operando carmicamente. Um objeto produz outro, que produz outro e saímos vagueado. Esse vaguear da mente produz o vaguear das energias, dos vários impulsos, do que decorrem as várias ações.
Estamos no caminho de reencontrar um rumo seguro, um eixo. Como o Buda diz, nesse momento estamos sob o domínio do carma, é como se estivéssemos sob o domínio de seres sutis que direcionam nossas energias internas e definem nossas fixações sutis. Para chegarmos ao ponto no qual Buda percebeu “livrei-me daqueles que foram meus senhores durante vidas incontáveis, as disposições mentais e os agregados”, há ainda um trabalho longo que começa quando olhamos face a face os impulsos cármicos e optamos pela liberdade. O processo mais direto de atingir isso através da meditação começa com a prática da imobilidade do corpo, mas o carma vai se opor, vai tentar desestabilizá-lo, desencorajá-lo, deprimi-lo.
Na primeira etapa do treinamento da meditação, a mente busca a experiência de serenidade e mantém o foco na respiração. Tudo o que acontecer em volta, vozes, ruídos, acontecimentos, são descartados como movimentos externos, bem como os movimentos internos da mente, pensamentos, sensações, emoções. Não focamos isto, mantemos a mente ancorada na respiração e na imobilidade.
A posição do corpo é coluna ereta, as mãos ficam com os dedos mal se tocando. Se os pensamentos brotam com intensidade, surge uma energia correspondente e a pessoa, involuntariamente, aperta os polegares. Teste você mesmo e veja que é assim. Se ficar sonolento, os dedos polegares se afastam. A posição mais adequada para as pernas é a de lótus, ou seja, pés sobre as coxas com as palmas para cima.
A coluna é ereta. O queixo recolhido. O corpo não fica totalmente relaxado, é necessário a decisão de sustentá-lo na posição, isto faz parte do processo. Sustentamos os dedos, os braços. Os olhos fitam à frente, ou focam o chão em um ângulo de 45º, as pálpebras podem ficar completamente abertas ou semicerradas. A respiração é abdominal e se dá através do nariz e dos lábios que ficam entreabertos.
Toda a distração mental ou movimento do corpo é visto como perturbação da meditação. Ainda que ocorra, evitamos ficar irritados. Como com uma criança, não criamos tensão, não forçamos; no momento em que percebemos a distração, retornamos ao foco. Assim seguimos até o ponto em que nossa mente naturalmente se estabiliza. Quando a concentração aumenta podem surgir outros obstáculos, perturbações visuais (luzes, cores, imagens, etc.). Retomamos o foco e motivação e seguimos sem impaciência.
Posição de fala é o silêncio, respiração serena. Neste momento surgem os olhos que vêem além das imagens, além da forma. Vemos ventos internos, energias, vemos se o amor ou a compaixão estão presentes, mas isso não se dá com olhos físicos. Não se vê isto como imagens. Através dos ventos, o amor, a compaixão e as energias podem ser vistos de modo objetivo, concreto. A meditação mudou, a segunda etapa já está surgindo.
Na segunda etapa da meditação, buscamos um pouco mais de consciência sobre o processo dos ventos internos que comandam os pensamentos, liberam as energias, comandam os impulsos e a sustentação do carma. A nossa reação rápida às coisas se dá através dos ventos, todas as coisas se manifestam através de ventos específicos comandados ou surgidos automaticamente. É bom que, através da meditação, consigamos lavar as impressões residuais que manifestam os automatismos do corpo. Quando as energias estão perturbadas, transferem as perturbações às gotas que comandam e isto gera desequilíbrios e doenças. A meditação, por sua vez, atua sobre a energia e os ventos, estabilizando-os, harmonizando-os, o que produz a recuperação da saúde. Como fazer isto?
Com a mente focamos a respiração, inspiramos quatro dedos abaixo do umbigo e expiramos irradiando por todos os poros do corpo. Podemos expirar direcionando os ventos para partes específicas do corpo onde hajam desequilíbrios. Primeiro uma perna, depois a outra, progressivamente todo o corpo. Se temos doença o local lateja. Seguimos o processo de reequilíbrio até dissolver essa sensibilidade. Essa prática traz a recuperação da saúde e da equanimidade. Tomando a equanimidade por referência, desenvolvemos a consciência do corpo sutil que comanda as ações e das energias que surgem inseparavelmente dele.
Antes da prática da meditação é muito auspicioso fazer prostrações diante dos símbolos da própria natureza do absoluto. O que se prostra – nosso corpo, fala e mente duais – é impermanente, vai desaparecer. É importante reconhecer esse aspecto finito. O finito se prostra diante do ilimitado. Vamos ao chão e fazemos a prostração em corpo, fala e mente. Desta forma nossa mente coloca-se em uma condição receptiva, propícia à prática.
Quando vamos ao chão, mentalmente, tomamos o refúgio nas três jóias, os três aspectos da iluminação que se manifestam como compaixão: o Buda, a própria natureza ilimitada que é também a nossa própria natureza, e é inseparável da natureza ilimitada de todos os seres iluminados, o Darma, a compreensão que brota da natureza ilimitada, e a Sanga, o conjunto dos que praticam a busca da liberdade. Quem faz a prostração é nosso “eu”, nosso corpo, fala, mente e identidade finitos. Isto produz liberação pois estamos apegados a esses aspectos. Olhando o corpo e a mente como nossa essência nos movemos o tempo todo protegendo os impulsos que daí brotam. A obediência aos impulsos é a essência da experiência de uma identidade pessoal. No momento da prostração, através da própria prática, desenvolvemos a consciência deste processo e podemos liberar estas fixações.
Se acolhemos qualquer tipo de fixação, o sofrimento é inevitável. Todo sofrimento se origina dessa forma e as dificuldades também. Assim, quando, com a intenção de tomar refúgio na nossa natureza ilimitada, vamos ao chão e o tocamos com os cinco pontos de nosso corpo – mãos, joelhos e testa – é a nossa natureza limitada que está indo ao chão curvando-se diante da natureza ilimitada. Isso produz liberação. Quando levantamos é com a natureza ilimitada que o fazemos. Os cinco pontos que tocamos no chão nos liberam dos cinco venenos e das seis emoções perturbadoras, geradoras das 10 ações não-virtuosas e sustentadoras da Roda da Vida.
No momento em que vamos ao chão deixamos estas seis emoções perturbadoras: orgulho, raiva, ignorância, aquisitividade, inveja e desejo/apego. Quando levantamos, fazemos o voto de Bodicita: “até que o samsara seja esvaziado, buscarei incessantemente trazer benefício e felicidade para todos os seres, reconhecendo que foram todos minhas mães e pais”. Com esse propósito as prostrações são feitas, estas palavras descrevem a experiência interna que acompanha as prostrações.
Em tudo isto existe um aspecto sutil a ser considerado: a diferença entre compreender a prática e exercer a prática. Externamente parece tudo igual mas dentro há uma diferença. Exemplo: quando olhamos mentalmente para o que é fazer a prática nos vemos prostrando e levantando enquanto recitamos, mas isto não é tudo. Isto não é ainda a própria experiência de prostrar-se, liberar-se das emoções perturbadoras, levantar-se e recitar. O mesmo com respeito aos votos. Ainda que possamos compreendê-los e entender como operam, há uma diferença entre isto e a real decisão de trazer benefício a todos os seres.
Neste momento em que vocês estão aqui ouvindo, não estamos propriamente praticando ou experimentando o que está sendo falado. Há uma expressão importantíssima: transferência de consciência. Quando efetivamente fazemos a prática, nossa mente passa por uma transferência de consciência correspondente. Nem é mesmo necessário que haja uma compreensão de como se dá este processo, basta que ele ocorra. Essencialmente, praticar compaixão é fazer prática, já pensar sobre a compaixão é apenas pensar. Um traz transformações instantâneas para a mente, que passa a imaginar e ter impulsos correspondentes à compaixão. O pensar sobre a compaixão não produz a energia de ação correspondente à própria compaixão, por isto é distinto da própria prática da compaixão.
Pode-se fazer as prostrações diante de uma foto do Buda, tigelas, altar, pedra, flores, vela. Após, recitamos a homenagem ao Buda e os votos de refúgio. Quando fazemos essa homenagem é também uma homenagem a nossa própria natureza ilimitada. Se temos a experiência de fazer esta homenagem de fato, significa que estamos reconhecendo que a natureza liberta é de grande valor. Em respeito, novamente fazemos prostrações, uma a cada vez que recitamos cada voto de refúgio.
Depois, se estamos nos introduzindo à prática de meditação, podemos sentar e ficar 10 minutos em silêncio, é a meditação da serenidade e tranqüilidade. Se fizermos as prostrações antes será muito mais fácil atingir a experiência de felicidade, alegria e serenidade porque ocorre em uma paisagem previamente purificada do ponto de vista cármico. Isto limpa as conexões cármicas e quando sentamos em silêncio surge uma grande emoção de gratidão aos Budas, aos seres iluminados todos. Depois você pode fazer mais 10 a 15 minutos com o foco no aspecto da respiração e energia. Ao final, a dedicação.
Por que essas etapas são importantes? Porque vão abrir experiências reais. A serenidade rompe a nossa ligação ao samsara. Quando atingimos a realização dessa prática surge uma experiência de felicidade tão intensa que não há nenhum paralelo no samsara. Daí em diante o samsara não tem mais o poder que tinha antes. É como que se a pessoa, nesse momento, tivesse descoberto um foco de mente que produz méritos maravilhosos, felicidade intensa, ofuscando o samsara inteiro. No final desta, que é a primeira etapa do treinamento de meditação, já há este poder. Por que não é ainda a liberação? É devido a que esta experiência está na dependência da própria meditação – tem um início, meio e fim. É impermanente, é construída, não é ainda o estado natural de liberdade lúcida da mente.
A segunda etapa do treinamento de meditação nos leva à experiência de equanimidade. Com isto há o rompimento dos carmas sutis que se manifestam no comando dos ventos e ações. Os carmas que não podemos localizar de forma cognitiva estão ligados a todos os processos obsessivos na forma de associação de pensamentos e dependências, por exemplo, ao fumo, ao açúcar, à raiva, à inveja, enfim, a todas as emoções perturbadoras. Todas estas experiências são não-cognitivas, são medos, formas de defesa das escolhas carmicamente eleitas. A equanimidade purifica estas marcas, mas a iluminação ainda está longe.
Em cada etapa olhamos os aspectos vantajosos, as qualidades que surgem. Igualmente importante é olhar os obstáculos que ainda estão presentes, por exemplo, nas etapas da meditação descritas até agora, seguimos com a experiência clara da consciência de um “eu”. Uma identidade pessoal que está manobrando, produzindo todas essas transformações, ou seja, dirigindo a própria prática de meditação… logo, estamos só “afiando” os instrumentos…
Após, aceleramos esse processo e conscientemente vamos chegar aos obstáculos e trabalhar sobre eles, aumentando a decisão de penetrar na região cármica. Mais adiante vamos aumentar a capacidade de foco da mente, vai surgir a experiência de concentração onde sentamos e apagamos toda a ligação a objetos internos ou a conexões externas e repousamos completamente serenos e unifocados. Neste ponto podemos até pensar “estou iluminado”, o que ainda seria um engano… A liberação ainda está longe.
Está longe porque nesse momento há ainda a experiência de uma identidade pessoal como agente de toda a ação. Esta é ainda a meditação impura. Mais adiante surgirá a “meditação pura sem sabedoria”, um processo no qual a meditação não bloqueia a ação sensorial, a mente se mantém completamente concentrada e atenta, mas imperturbável, focando tudo o que ocorre nas dez direções – norte, sul, leste, oeste, as intermediárias, e mais zênite e nadir.
Quando há esta experiência, surge um grande divisor. Agora há os méritos de estabilidade e concentração que permitem a prática da sabedoria. É o momento para receber ensinamentos sobre a natureza da realidade. É o acesso à experiência de que a realidade externa e o próprio observador surgem conjuntamente, de modo inseparável, no mesmo fenômeno. Agora é possível a meditação com sabedoria. Fora e dentro são o mesmo, o que não era compreendido até então. Começa, assim, uma outra etapa de meditação que culmina na experiência da perfeição de todas as manifestações. A beleza e perfeição surgem como atributos naturais de todos os aspectos do que antes se chamava samsara. A ação no mundo não limita mais a liberdade.