Budismo, meditação e cultura de paz | Lama Padma Samten

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A Grande Vida

Trecho final do ensinamento “Desconstruindo o medo”, oferecido por Lama Padma Samten na manhã do dia 5 de junho de 2021.

Quando a nossa vida se amplia e se vê como ela já é, então os medos correspondentes às vidas estreitas cessam.

Existem algumas coisas que surgem e cessam, surgem e cessam. Mas tem aquilo que não surge e nem cessa, que está incessantemente operando. Este ponto é o ponto central no budismo: aquilo que está incessantemente operando e que a gente não pode nem mesmo dizer que é uma propriedade nossa. A natureza búdica não pertence ao mundo, o mundo pertence à natureza búdica. Os mundos são expressões da natureza búdica, e não a natureza búdica é expressão do mundo onde nós estamos, que é a expressão mais intuitiva para nós. Ou seja, nós estamos dentro do mundo, o mundo está aqui, nós estamos fazendo práticas, e a gente espera que dentro da nossa mente surja a iluminação. Aí aquilo é um departamento dentro do mundo. Dentro do mundo existem os seres, e, casualmente, um dos seres sou eu mesmo. Agora dentro de mim existe a mente, e dentro da mente pode aparecer a iluminação. Então, a iluminação parece ser um caso particular do mundo, mas, na perspectiva budista, o mundo inteiro surge como uma expressão da própria mente que é ampla. A mente não está limitada à nossa existência, ela é muito mais ampla.

A cessação do medo

É nesse sentido amplo que os 12 elos são iluminados, os seis reinos são iluminados e o mundo ganha uma nova feição. A liberação é possível e a cessação do medo se dá.  É como se o avô estivesse jogando bola com o neto, ou seja, para o neto aquele jogo é crucial; o avô sorri. Ele entende a vida como alguma coisa muito mais ampla, ele não tem aquela limitação. Então, esse é o ponto. Ainda que possa acontecer o contrário: o avô vermelho querendo ganhar do neto, e o neto com uma visão ampla, serena, além de todos os jogos: “Eu estou aqui jogando com o meu avô, porque ele precisa fazer um pouco de exercício, ele está meio deprimido, meio sozinho, então, eu venho aqui e jogo com ele. Mas este é um caso particular, porque a minha mente é muito mais ampla.”
Então, nós temos essa questão da mente que se reduz e da mente ampla. Então, a mente que reconhece este aspecto secreto, ela não flutua por dentro dos casos, das construções e das situações particulares. Assim, nós podemos tomar o medo como o propulsor do nosso próprio caminho. Num certo sentido os tibetanos até usam isso. Eles não usam assim como nós dissemos “o medo como caminho”, mas até poderiam. Mas eles sempre lembram: “a morte existe”. Daí a gente pensa: “Ops!” A morte existe. Nós estamos felizes andando por aqui e por ali, e olha, a impermanência e a morte existem.
Essencialmente tem essa perspectiva. A gente vive a vida, mas tem a perspectiva da morte junto, da impermanência, da ilusão daquele ambiente todo. Então, neste sentido, o medo pode se transformar em caminho. E a gente diz: como eu ultrapasso isso? Como é que a gente pode ultrapassar esta experiência de vida e morte? Como é que é isso? É possível isso?
Então, este ponto é o que nos remete à consciência do aspecto secreto. Porque o aspecto secreto tem esta característica, em tibetano isto vai se chamar lhundrup. Então, este aspecto da liberdade natural é chamado em tibetano de kadag, que é a grande vacuidade. Ou seja, essa manifestação incessante da mente livre e aberta, que só pode ser chamada de livre e aberta porque tem também incessantemente o aspecto luminoso, tem tzal, o aspecto luminoso, ou seja, nós podemos construir coisas. Então, a liberdade incessante de construir coisas e outras coisas, e também não construir, essa liberdade é kadag. Mas kadag é inseparável das construções, porque justamente o que dá sentido à prisão e liberdade é fato de que tem construções.
Então, uma vez que tem construções, e nós seguimos as construções, as prisões passam a existir. A prisão é muito simples: é apenas tomar as construções como base para novas construções e as novas construções de base para as construções subsequentes e não ver esse processo acontecendo. Quando vocês estão meditando, vocês vão perceber exatamente isso. Porque, ainda que vocês sejam praticantes experientes, é provável que tenha um fluxo mental aí dentro.  E o que é esse fluxo mental? Vocês olhem: surge uma ideia e essa ideia serve de base para outra. Vocês não interrompam o fluxo. Vocês apareçam como aquele que contempla esse fluxo. É assim: surge uma ideia, eu uso aquela ideia como base para outra, e aquela outra como base para a subsequente, e assim vai indo. Então, esta cadeia de imagens é a ação luminosa da mente. Então, algo é luminoso e dependente, então a gente chama isso de originação dependente. Mas, ainda que eu construa uma pilha dessas manifestações, de repente, num estalar de dedos,  aquilo cessa, pelo poder de kadag – porque kadag, a liberdade natural da mente, está lá. Eu posso andar para qualquer lado e também posso não ficar andando para lado nenhum. Então, isso é kadag. Mas kadag fica visível em contraste com tzal, com a construção luminosa das realidades, das aparências, seja do jeito que for, mesmo que seja só energia, não tem nada visível, tangível, mas tem o movimento da energia. É assim.

Então, quando nós percebemos que toda manifestação é uma manifestação luminosa, e essa manifestação luminosa é totalmente inseparável do aspecto de kadag, então quando a gente tiver esta familiaridade com kadag, lhundrup, e tzal – lhundrup é o aspecto incessantemente presente de kadag e de tzal – aquilo está incessantemente presente. Quando nós olharmos isso como se fosse a própria vida, isso é a vida, isso é viver, é isso. É kadag, tzal e lung, que é energia. E junto com isso tem o quê? Tem a capacidade de reconhecer a própria operação disso, que é rigpa, que é a lucidez da mente. Então, nós temos sempre operando: a liberdade, a manifestação luminosa, ou o potencial de manifestação luminosa, a energia que acompanha este potencial de manifestação luminosa e a capacidade lúcida de reconhecer isso tudo funcionando. Isto está incessantemente presente e disponível, não importa se a gente está nos infernos, se a gente está nos reinos dos deuses, se a gente está sendo enforcado ou tenha o fiscal do imposto de renda na nossa frente, seja o que for, se a gente tem o assaltante na nossa frente, se tem qualquer coisa deste tipo, se tem coisas de grande injustiça ou coisas muito maravilhosas na nossa frente, seja o que for, aquilo a gente vê que é luminosidade, porque aquilo surge e cessa. Como é que cessa? Cessa por kadag, pela liberdade. Então estes aspectos tem a característica de lhundrup, ou seja, eles estão incessantemente presentes. A gente vai trocando de uma configuração para outra, mas cada configuração é sempre uma configuração deste conjunto.

Sorrir para os medos

Então, quando a gente sentir isso e tiver essa clareza completa, quando a gente não perder essa clareza, o medo cessa. Por quê? Porque não estamos mais presos àquele jogo. Não somos mais o personagem daquele jogo. A gente não se confunde. Somos kadag, lhundrup, tzal, lung, rigpa, é isso. Nós estamos ali o tempo todo. Mas quando nós nos tornamos seres particulares, a gente não perde este aspecto amplo, mas a gente deixa de vê-lo. Nós ficamos focados nos aspectos estreitos. Então, faz parte do jogo estreito ganhar e perder, e ter medos, daí a gente sorri para os medos.

Então, este é o sentido de quando o samsara e o nirvana são o mesmo. Por quê? Porque o samsara não rouba o nirvana. O samsara é um exemplo do nirvana. É assim. O samsara é um exemplo dessa clareza. Essa clareza seria o nirvana. Essa identidade seria o nirvana. O nirvana é o fim dos medos.
Então, a gente precisa viver a vida estreita dentro da clareza da vida ampla. Elas não se excluem. Nem a estreita exclui a ampla, nem a ampla exclui a estreita. A estreita é o melhor exemplo da ampla, e a ampla se manifesta incessantemente através da multiplicidade de aparências que surgem o tempo todo.

Ondas no mar

Este exemplo das ondas e do mar, eu acho muito bom sabe. Todos os exemplos têm uma limitação, mas quando a onda surge, ela é uma manifestação do mar, ainda que a onda possa ter ideias próprias. Toda onda tem uma certa crista: ela vai lá e vai andando daquele jeito. E a crista da onda uma certa hora murcha, não tem crista de onda que não murcha, e não tem onda poderosa que não se dissolva depois. Elas não se dissolvem,  porque elas já são o próprio mar. Esta coisa de dissolver é quando a gente gera uma imagem de que aquilo não é o mar, aquilo é onda. Então, nós também, nos levantamos da terra, nós somos uma onda da terra: a gente se levanta, uma onda de carbono e água, com uma crista sempre, e a crista vai branqueando e aquilo afunda lá pelas tantas.  Não tem orgulho, não tem crista que dure mais do que um tempo. Eu acho interessante, olha para o galo, para aquela crista vermelha do galo, onde que aquilo vai parar? Vai virar salsicha de frango, pessoal. É uma desgraça isso. Então, é assim. É muito curioso. Então,  quando a gente vê os seres muito topetudos, a gente espera um pouco, porque a onda vai seguindo.
Eu acho que a impermanência tem um risinho, sabe? Ela leva a onda até o fim! Ela poderia dizer: “Bom, agora vamos cortar esta onda neste momento de glória!” Não, primeiro ela destrói a onda, a crista se dissolve, ela vira uma onda redondinha, aquilo vai sumindo, uma vergonha.
Então, os seres todos, não importa o que for, se eles se levantam da terra, eles terminam voltando para a terra, como as ondas surgem da água e são a água e voltam para a água. Melhor pensarmos que nós somos esta grande terra. Qual é a grande terra? A única terra – que nós temos que explicar para os taurinos – qual é a terra, terra? “Taurinos, olhem bem, o que é a terra? É kadag, lhundrup…”,  “não, não, Lama, kadag não pode ser a terra, kadag não!” Este é o fim dos taurinos.
A terra mesmo é o céu. Isso é quando touro se encontra com peixes, com aquário. O maior pesadelo dos taurinos é descobrir que a terra mesmo é o céu. Isso não daria certo, mas é isso, pessoal. A terra é o céu. O que é permanente?  O céu! Então, o que é estável? O que é estável é justamente a manifestação de kadag. Isso que é lhundrub. Kadag, incessantemente presente. Junto com a manifestação de kadag nós temos tzal, a luminosidade que constrói, temos lung que é a substância do que é construído, e nós temos a lucidez com respeito a isso. Por que a gente pode falar sobre isso? Porque tem rigpa, é a mente que vê a mente: a mente faz, e a mente vê, é consciente do que ela faz, é Prajnaparamita. É assim.
Então, isso é a vida! Isso é viver. Esse é o ponto! Não é assim: “Eu tenho minha vida e agora eu entendi alguma coisa.” Não, isso é que é a vida. E as coisas que a gente vive como se fossem a vida são manifestações luminosas, maravilhosas desses aspectos que são incessantes. É assim.
Então, pessoal, não tem problema nenhum da gente viver as várias circunstâncias. A gente abandona o medo de se perder, porque nós vamos nos perder como? Aí a nossa forcinha é capaz de derrubar lhundrup, derrubar kadag, derrubar tzal, lung? Não tem chance nenhuma. Zero de chance. Não tem como. É como se a gente imaginasse que o mar poderia se assustar com a grande onda que então surge. O que é isso? Qual é a onda que vai assustar o mar? Pense! Qual é a construção luminosa ilusória que vai afetar o espaço? Pode surgir a nave que quiser aí, não tem problema. Não tem uma nave que vai sugar o espaço e o espaço vai dizer: “Não, não, não!” E a nave puxa o espaço todo. Não tem isso, pessoal. Não tem como. Ou a onda que vai drenar o mar e pronto. Isso não vai acontecer. Então, o medo cessa. A questão não é que a nossa vida está afetada. Quando a nossa vida se amplia e se vê como ela já é, então os medos correspondentes às vidas estreitas cessam.

A grande vida e os bardos

Se a gente não tiver esta clareza, enquanto crianças temos medo que os pais morram, quando a gente avança um pouco mais, a gente tem medo do vestibular, a gente tem medo dos amores, medo das profissões, medo dos trabalhos, e a gente faz força e obtém resultados. Mais adiante nós vamos ter uma sensação de que a vida talvez não tenha muito sentido.  “Será que a vida é isso mesmo? É só isso? E agora?” Então, a gente tem aflições. A gente tem medos de abandonos, de desinteresses, de solidão, e mais adiante quando a pessoa chegar na velhice… A melhor definição de velhice que eu ouvi até hoje é assim: os velhos começam 20 anos depois da nossa idade. Então, eu já estou dizendo assim: os velhos de 92, aí sim que vai começar o envelhecimento, doença, decrepitude e morte. Então, isto é janamarana, a gente olha e tem um calafrio: “Será que eu vou ter que passar por isso?”. Quando a gente diz: “Será que eu vou ter que passar por isso?”, somos nós enquanto seres estreitos que vão ter que passar por isso. Então, nós olhamos de novo o que é esta grande vida incessantemente presente – kadag, lhundrup, tzal, lung, etc.
A gente olha isso e nós entendemos os ensinamentos de Guru Rinponche sobre os 5 bardos, ou seja, como que a mente lúcida rigpa não é afetada por bardo nenhum. Então, nós estamos no bardo da vida e rigpa vê a vida e é lúcida sobre a vida. Quando nós estamos no sonho, a gente vê o sonho e temos a lucidez quanto ao sonho. Quando a gente medita, nós vemos a meditação e temos lucidez quanto à meditação. E quando nós estamos doentes, nós temos o quê? A lucidez quanto à doença. Quando a gente está muito mal, a gente tem a lucidez sobre a condição de estar muito mal, e assim por diante. Quando a gente afunda na água a gente abre o olho e vê como é estar dentro da água,  pessoal. Então, quando a gente afunda na morte, a gente abre o olho – melhor morrer com o olho interno aberto –  e vê a morte, e depois a gente vê o renascimento, a gente vê o que está além da vida e da morte. Esse é o ponto. Então, existe esta grande vida. Esse é o ponto.
Transcrição: João Ovídio (Santos-SP)
Revisão e edição do texto: Stela Santin (Viamão-RS) 
Edição do vídeo: Gustavo Gitti e Jeanne Pilli (São Paulo-SP)

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