Introdução ao Budismo como Prática na Vida Cotidiana
Palestra de Kyabjé Trulshig Rinpoche
Lisboa, 29 de novembro de 2001
Resumo dos ensinamentos por Lama Padma Samten
Saudação
Darmakaia, Sambogakaia, Nirmanakaia – a natureza ilimitada se manifesta dessa maneira, para benefício de todos os seres. Sua Santidade o Dalai Lama é a manifestação do Senhor da Compaixão em aspecto humano. E é uma grande fortuna que ele tenha visitado Portugal e estar nesse mundo. Cada um deveria rezar e cultivar a alegria da percepção correta do significado da presença de Sua Santidade o Dalai Lama em Portugal.
Muitos de vocês viajaram para chegar neste encontro. Muitos são praticantes ou seguidores de praticantes. Há nesta sala cem ou duzentas pessoas, alguns budistas e outros pertencentes a várias tradições religiosas. Todos somos seres humanos. Eu os saúdo dizendo tashi delek.
Introdução
Existem diferentes caminhos espirituais, que preenchem as diferentes necessidades dos seres. O Darma em tibetano é chamado Tchö, ou seja, “aquilo que corrige o significado das ações que nos dirigem”, que corrige as condições que produzem sofrimento. O Darma ajuda-nos a corrigir nosso comportamento, nossa visão. O Darma produz resultados virtuosos, elimina o sofrimento, produz o que é saudável e harmonioso.
Tendo isso por base, eu que sou um velho monge de 78 anos de idade, vou partilhar com vocês algumas palavras do Darma.
O tema
Há quatro aspectos essenciais nos ensinamentos do Buda. Tudo está contido nesses quatro aspectos essenciais: 1) Tudo que é composto se desfaz. É passageiro, transitório. 2) O que está baseado no conflito ou nas emoções perturbadoras, conduz ao sofrimento. 3) Todos os fenômenos são livres, sua natureza é a vacuidade, shuniata. São vazios. São manifestações da liberdade. 4) Transcendendo o sofrimento, atingimos a paz absoluta.
Primeiro ponto: Impermanência
Tudo o que é composto é transitório. O que se reúne, se desfaz. Tudo o que vemos é assim, não é? Pode parecer sólido, mas está em constante mudança.
Exemplo: As torres gêmeas de Nova Iorque. Ninguém poderia imaginar que em um só dia cairiam, na verdade em poucas horas. Mesmo parecendo sólidas, rapidamente se desfizeram em pedaços. Nosso corpo também é assim. Muda a cada instante, mas agimos como se desconhecêssemos isto. Da mesma forma que olhávamos para as torres e não reconhecíamos a impermanência, desconhecemos este aspecto em nossos próprios corpos físicos.
Segundo ponto
Qualquer ação baseada em conflito ou emoções perturbadoras conduz a resultados negativos. Por vezes somos apanhados por nossas ações atribuladas. Os insetos também, assim não há muita diferença.
Somos muito ocupados. Nossa atitude é muito misturada, há nela aspectos positivos e negativos. O que fazemos produz resultados negativos, eventualmente de longo alcance.
Exemplo: Os que fizeram o ataque às torres, com raiva criaram a destruição. Qual o benefício produzido? No momento da morte, baseados na emoção da raiva, produziram medo, em si mesmos e em todos os outros. Qual o resultado do sofrimento produzido? O sofrimento não pára ali, incontáveis pessoas seguem repercutindo esse sofrimento e ampliando-o.
Terceiro ponto
Todos os fenômenos quando percebidos no nível mais sutil, nem são tangíveis, nem têm existência sólida. Tampouco há o sujeito que os observa. Ainda assim vemos tudo como sólido e existente em si mesmo. Esta experiência está relacionada com nossos estados internos, e muda incessantemente. Esta experiência tem a natureza da vacuidade – no sentido de ser expressão de liberdade e não no sentido de ausência de algo.
Para experimentar isso de modo profundo, para descobrir isso, para descobrir a liberdade interna que vai além do sofrimento, é necessário compreender esta natureza da vacuidade, a ausência da natureza intrínseca dos fenômenos e do sujeito que os observa. É preciso compreender o modo verdadeiro como tudo surge e é percebido.
Para experimentar a natureza intrínseca além do sofrimento, um dos aspectos essenciais é acumular méritos em corpo, fala e mente. Isto se faz praticando amor, compaixão, alegria e equanimidade. Cultivando estas, que são as quatro qualidades incomensuráveis, e realizando ações positivas, criamos o corpo de manifestação, sambogakaia, e vamos além do sofrimento.
Para atingirmos a liberdade final, a natureza derradeira, a natureza que é completamente livre, fazemos uma prática que é simbolizada pelas mãos que se juntam, (Rinpoche junta suas mãos como em prece) uma simbolizando compaixão, e a outra, sabedoria. Com base nisto, treinamos a mente e atingimos a liberdade última que está além do sofrimento.
Quarto Ponto
Para atingir o estado de ir além do sofrimento, tanto no que diz respeito a nós quanto aos outros seres, há dois elementos a considerar. O primeiro deles é que precisamos da verdadeira compreensão, o segundo é que necessitamos do verdadeiro amor e compaixão. No entanto, é necessário observar que o segundo aspecto, ou seja, o verdadeiro amor e compaixão, é uma condição necessária para que o primeiro aspecto possa ser praticado.
Podemos nos treinar passo a passo com respeito a estes pontos. Treinando a mente através da reflexão de como as coisas verdadeiramente são, e após colocando em ação essa compreensão na vida prática. Isto é meditação, é uma forma de meditação.
Para entrar em uma sala há uma porta. Nosso treinamento é entrar pela porta do amor e compaixão. Falando aqui sobre amor, ele é o desejo de chegar à felicidade e suas causas, para benefício de todos, incluindo a nós próprios. Compaixão é o desejo de que todo o sofrimento seja removido, e também suas causas, para benefício de todos os seres. Esta é a prática prioritária para cada um. Se isso não for possível, pelo menos não causem sofrimento aos outros.
O panorama geral de toda a prática é o desejo de liberar o sofrimento e as causas do sofrimento. Para isso, é necessário que nós já evitemos causar sofrimento aos outros. Não desejamos sofrimento, portanto não causemos sofrimento. Todos querem ser felizes e libertar-se do sofrimento. Assim, evitamos todas as ações que produzam sofrimento:
a) Iniciamos focando nosso corpo físico e saúde. Lembramos que o corpo é o apoio e a mente é apoiada pelo corpo. Temos de cuidar do corpo para sustentar a saúde. É necessário manter boa saúde. Comer e beber o que for necessário para sustentar a vida. Sejam conscientes das coisas que utilizam para manter a vida, e sua quantidade.
A comida causa sofrimentos, diretos e indiretos aos outros. Evitem os alimentos agressivos. Sendo a carne necessária para a sua saúde, tome só o necessário. A carne não deve ser o prato principal. Nada coma em exagero ou além do necessário. Comer para sustentar a saúde, para manter a vida, esta é a correta aspiração. Usem frutas ou o que for, produtos que usamos para a nossa vida se manter, os outros não são tão importantes. Produzem embotamento. Afetam a saúde e a clareza mental. Os tóxicos, tomados de forma inconsciente, surgem como hábitos por falta de clareza e vigilância, e destroem nossa saúde.
Este é meu sincero desejo: evitem as substâncias que produzem dependência, prisão; usem amor e compaixão, e evitem o que não seja bom para vocês e para os que estão ao redor de vocês. Cigarro é ruim para vocês e para os que os rodeiam. Cria dependência, e traz sofrimento. Álcool também; quando em excesso, traz sofrimento para as famílias – evitem isso. Pratiquem o bom coração, o amor e a compaixão. Isso os levará a atingir um coração perfeito, nível que nos traz paz e liberdade. Este é o Caminho: as diferentes substâncias em si não são boas ou más, mas, se produzem sofrimentos, eliminamos e evitamos.
b) Para treinar a mente nós meditamos. Temos um objetivo para atingir, e precisamos um treinamento para atingir esse objetivo.
Alguns acreditam erradamente que a meditação se resume a parar o corpo, mesmo que a mente fique divagando; pensam que isto é meditação. Outros, também erradamente, acreditam que qualquer pensamento que surja na mente é um defeito de meditação.
É importante no início criar um estado de calma, mas o embotamento da mente não adianta. Para meditar é importante desenvolver a lucidez, baseada no amor e na compaixão, ou, em resumo, um bom coração. Como base para isso, em primeiro lugar tomamos refúgio. Em segundo lugar, cultivamos a mente que é bodicita.
O refúgio significa trazer apoio aos que estão em dificuldade. Genuíno bom coração a todos, não apenas aos que estão ao redor, liberando-os do sofrimento e da existência cíclica, libertando-os. Evitar os sofrimentos causados via corpo, fala e mente, isto é a base do refúgio. Adicionalmente, trazer felicidade aos seres. É necessário cultivar esta atitude.
Amor e compaixão são expressos por um bom coração. São o desejo de atingir a felicidade e as causas da felicidade para todos, sem distrações, sem outros pensamentos. Desejo de atingir isto para todos e para cada um dos seres vivos. É necessário desenvolver esta atitude de tal modo, que esteja sempre presente e fervorosa. Eu tenho confiança que vocês tenham isto muito forte: o desejo de chegar à liberação, para liberar cada ser do sofrimento e das causas do sofrimento, e nenhum outro pensamento. Fiquemos agora um minuto em silêncio com esse pensamento.
(Após o silêncio, Rinpoche retomou a palavra.)
Esclarecendo. Isto que foi descrito é a preparação para superar os conflitos intensos e avassaladores, conflitos com os quais não sabemos lidar.
Desenvolver o verdadeiro amor e a compaixão altruístas não é fácil; temos que treinar para adquirir a habilidade de fazer isso. É necessário evitar o que perturba a mente; diminuir os conflitos; é necessário reduzí-los.
Para treinar a mente através da concentração, temos que ter por base o amor e a compaixão, ou seja, um bom coração. Por que? Porque precisamos de um antídoto para os conflitos que nos perturbam constantemente, as emoções perturbadoras. A raiva e a burrice são naturais, agora é necessário ir além. Não alimentem mais nada, apenas esta aspiração.
(Dedicação dos méritos)
Para finalizar, dediquemos nossos méritos deste encontro com a correta motivação e para benefício de todos os seres em todas as direções.
Que os méritos deste encontro se expandam e toquem a todos.
Que o mestre universal da paz e compaixão, Sua Santidade o Dalai Lama, juntamente com todos os mestres e todas as tradições que veiculam esta mensagem, tenham longa vida.
Que todos estejam a salvo de gerar pensamentos negativos, o obstáculo mais destrutivo. Que estes pensamentos nunca surjam em nossa mente, e que todos os seres também estejam permanentemente livres deles.
(Pergunta da plateia)
Qual o significado de receber um nome de refúgio?
Um novo nome de refúgio significa a decisão de não mais causar sofrimento como no passado, sob o domínio das emoções perturbadoras. Pense assim: até agora o mal que causei foi apenas o produto dos conflitos interiores. O nome que eu recebo é para lembrar que sou uma pessoa diferente agora. A utilidade é esta. Nós não recebemos os nomes para repetirmos as negatividades, mas para nos colocarmos a serviço de todos.
Nota final
Pema Wangyal Rinpoche, que traduziu a fala de Trulshig Rinpoche do tibetano ao inglês, dirigiu-se a ele agradecendo e pedindo: em nome de todos agradeço seu ensinamento, e peço a Sua Eminência que retorne a Portugal. Sua Eminência concordou e sorriu.
Sobre a origem do texto
Este texto originou-se das anotações que fiz durante a palestra de Sua Eminência em Lisboa, dia 29 de novembro 2001. Enquanto ouvia a tradução de Pema Wangyal Rinpoche, do tibetano para o inglês, e da monja Tsering, do inglês para o português, anotei como pude com a motivação de levar a todos a jóia preciosa do Darma que brota da mente ilimitada através de Trulshig Rinpoche. No coração, a emoção de reconhecer, diante dos olhos, o Darma do Buda assumindo uma forma específica para o Ocidente, livre de qualquer sectarismo, e promovendo diretamente as qualidades ilimitadas e a sabedoria transcendente sem qualquer pré-requisito, diretamente. Ainda que o texto esteja incompleto e imperfeito, acredito que possa ser de benefício para todos.
Padma Samten, dezembro de 2001, Caminho do Meio, Viamão, RS, Brasil.