Transcrição de resposta oferecida na primeira tarde do Retiro de Verão 2017 (18 de Fevereiro), no CEBB Caminho do Meio
Pergunta: Lama, o senhor usou um exemplo hoje, mais cedo, em que o senhor citou o holocausto, enfim os judeus na Polônia e tal. Pessoalmente, isso é algo que me toca bastante, por questão de história de família, assim como outras pessoas vão ter outras histórias com escravidão, indígenas, cada um tem as suas. Mas eu fico muito curioso sobre como tornar esse sofrimento menos sólido, sabe? Para mim e para as pessoas próximas. Porque parece mesmo que vai tudo bem até chegar nessas coisas, que parecem muito sólidas mesmo.
Lama Padma Samten: Eu, às vezes, fico olhando as histórias e os sofrimentos dos povos, como que eles ainda olham. Eu vi, por exemplo, os mestres budistas falando sobre o que aconteceu com eles em relação ao Tibete. Fico observando para ver se tem ou não algum tremor de raiva dos chineses, mas não noto nada. Fico admirado de ver, porque eles descrevem as torturas, descrevem o fim daquele tipo de vida que eles tiveram, a destruição dos mosteiros, o sacrifício de atravessar aquele gelo todo. Eventualmente perder pontas de dedos, perder dedos dos pés, e também a mortalidade das pessoas, o esgotamento, a ausência de conexão com a vida na Índia. Eles chegam a um lugar que tem temperaturas elevadas e diversas condições com as quais eles não estão acostumados. Eles encontram doenças que não conheciam, do mesmo modo que os nativos no Brasil se defrontaram com doenças. Daí eles morrem em quantidade, de doenças que eles desconheciam, e ficam sem visão de futuro. No meio disso tudo eu não localizava amargor. Algumas das pessoas falavam tudo isso com um sorriso. Isso é muito profundo.
Eu notei isso também entre os indígenas. Nos indígenas eu localizei um traçozinho de sofrimento. Eu vi agora, recentemente, um filme que chama Tava: A Casa de Pedra. São os próprios indígenas guaranis com a câmera, filmando os velhos indígenas contando a sua própria história. Eu achei aquilo super comovente. É um filme muito substancial. Eles narram coisas muito interessantes, que a gente não supõe – eu não supunha, não sabia o nível de realização deles, como é que eles operavam. Mas eles, voltando, por exemplo, às regiões onde eles retiravam as pedras para a construção da Catedral de São Miguel, o templo que eles chamam de Tava. Os indígenas, caminhando, diferentes gerações. Incluindo as crianças, que não diziam uma palavra de tão concentradas. Todo mundo concentrado, com respeito, dizendo “aqui eles cortavam, aqui eles preparavam a pedra. Eles só levavam a pedra pronta”, etc. Então um jovem diz: “Por que eles fizeram isso? Será que eles foram forçados a fazer isso?”.
E tem vários relatos. Alguns relatos que se chocam um pouco entre eles ou se complementam. Alguns, por exemplo, consideravam que muitos jesuítas falavam com Nhanderu. Nhanderu, em resumo, é Deus, na visão guarani. Eles diziam “Quando os jesuítas chegaram, eles acreditavam que nós não tínhamos conexão com Nhanderu. Imagina?!” E eles riam. Por quê? Porque eles são totalmente conectados a essa visão de Nhanderu. Eles têm uma visão sofisticada disso.
Mas eles são um povo que foi massacrado. Eles dizendo assim “Agora quando a gente visita as ruínas que nós construímos, nossos avós construíram, nós temos que pagar para entrar ali, mas aquilo é nosso. Aquilo foi construído por Nhanderu, para nós vivermos ali. Os brancos vieram, como se fossem representantes de Nhanderu, mas eles eram falsos. Porque depois vieram outros brancos e destruíram aquilo, que nós mesmos tínhamos construído. Aquilo era a nossa vida. Deus nos deu aquilo. Agora a gente tem que pagar para poder entrar para olhar aquilo que nós mesmos construímos. Enquanto isso, as nossas terras estão desaparecendo, porque o branco é voraz. Ele vai dominando todas as áreas, vai dominando tudo. Nós não temos mais terra.” Esse é um holocausto guarani, só que é um holocausto vivo, que continua se exercendo. Ele não foi suspenso, não chegaram os exércitos e interromperam o processo.
O holocausto Guarani continua. É comovente. E nós estamos numa situação parecida com a situação dos alemães, na época em que eles apontavam os judeus para serem presos. Porque, no mínimo, nós estamos na região da indiferença frente ao holocausto guarani. Está certo que sempre tem alguém fazendo alguma coisa.
Esse filme, por exemplo, é feito pelos próprios guaranis jovens filmando a eles mesmos. Dentro da estética deles, que é muito interessante, que é diferente da nossa. Eles têm longos tempos de silêncio na narrativa. No mesmo filme eu vi um dos velhos dizendo: “Agora nós estamos falando um pouco de bobagem, mas daqui a pouco a nossa conversa vai ficar brilhante.” Eles estavam jogando um pouco de conversa fora, para chegar ao ponto e tocar naquilo. É muito comovente. Isso com todos eles falando no idioma deles, não em português, nem em inglês. O idioma deles está vivo, o povo deles está vivo.
Mas muitos deles dizem: “nós fomos traídos, nós fomos enganados.”, enquanto outro dizia: “E eu não respeito os padres, eu não respeito a igreja e não respeito o livro. Outro dia veio uma irmã (uma freira), veio aqui e eu disse ‘vocês destruíram o nosso povo’ e ela disse ‘não, não fomos nós.” E aí todos riem, porque ela diz “não, não. Eu não fui, eu não estava lá”. Mais ou menos assim. Mas, na verdade, o que eles estavam dizendo é que essa visão, isso que a gente está trazendo, é o que destruiu o povo deles. Aí eles dizem: “Eles tentaram substituir o Nhanderu por Jesus, como se houvesse diferença.” Isso tudo faz parte disso que eu estou chamando de holocausto guarani.
Mas, ainda assim, eles estão serenos. Eles não estão pensando: “Nós vamos nos juntar e vamos pegar todos eles e julgar na história e nós vamos condená-los. Aqueles que ainda apóiam, nós vamos fazer alguma coisa.” Fazer isso, eu considero que é a continuação da tragédia. Eu considero, por exemplo, que o verdadeiro inimigo dos judeus no holocausto não eram os outros povos. Não era nada mais, nada menos do que o inimigo vivo que continuou operando na forma de sectarismo e de exclusão. Eu considero que qualquer povo está totalmente vulnerável ao inimigo verdadeiro, que é o sectarismo e as divisões. Esse inimigo está totalmente vivo. Se nós olharmos, por exemplo, o que está acontecendo atualmente, o sectarismo surgindo como partido político, se estabelecendo como plataforma de governo, no planeta inteiro, isso realmente é muito comovente.
Eu posso estar enganado, porque a questão judaica é uma questão muito complexa, mas se a gente pensar no número de judeus que existe hoje, naquela região da Palestina, e o número de judeus que existia antes, é totalmente desproporcional. Quando os judeus chegaram lá, havia os palestinos que governavam aquele lugar. Hoje, esses palestinos estão quase numa sociedade de apartheid. Do mesmo modo que os judeus sofreram em guetos, nós vamos encontrar os povos palestinos em regiões de guetos. Historicamente, eu não entendo completamente o que aconteceu. Eu vi, por exemplo, a colonização judaica naquela região, no pós-guerra, recebendo contribuições de muitas pessoas que eram pensadores muito amplos. Muitos pensadores socialistas chegaram lá, eles tinham ideias de construir sociedades elevadas. Eu não sei bem como é que isso tudo resvalou para um processo totalmente radical e aflitivo.
Isso é um comentário sobre a questão específica. Mas eu considero que o inimigo não é racialmente localizável. O inimigo é um aspecto interno, é o sectarismo. E ele pode chegar em qualquer ambiente. Dentro das famílias, dentro dos lugares, nos estádios de futebol, ele está ali. Está matando as pessoas. Então, esse é o inimigo, de fato. É a dualidade tomada num nível extremo de exclusão e de colocar o outro nos infernos, como uma coisa favorável. É o ataque do nível sutil do reino dos infernos.
A história da humanidade está cheia de exemplos. Por exemplo, os poloneses sofreram isso, enquanto poloneses, diante dos russos. Dentro da Rússia, também, em muitos diferentes momentos, houve limpezas desse tipo. Em diferentes países também. Os cristãos também passaram por isso, eles se mataram durante longo tempo. Eu acho importante a gente entender que as duas grandes guerras do século passado foram guerras entre povos cristãos e capitalistas. Não foram guerras ideológicas, no sentido dos russos socialistas ou comunistas lutando contra os capitalistas. Não foi nada disso. Foram guerras entre países capitalistas, todos eles cristãos, mas profundamente enraizados em visões sectárias. Esse é o inimigo.
Vídeo do Ensinamento
A pergunta começa nos 1h 44m 45s (para outros trechos na mesma sessão, veja o índice do próprio vídeo):