Texto de Lama Padma Samten publicado na revista Vida Simples de outubro de 2014
O Henrique e a Talitha são irmãos e bons amigos. Na foto eles estão atônitos, de mãos dadas, engasgados pela aflição. Ao fundo e ao redor a destruição. A falta de opções futuras não se desenha em suas mentes. Nem a falta que seus pais farão em suas vidas ou que não mais retornarão. Estão paralisados. Não gostaria que eles passassem por essa experiência abrupta. Não é um raciocínio mas um sentimento fundo. Vejo alguma estabilidade no rosto do Henrique, não vem da clareza mas diretamente da base de seu coração. Talitha, menor, se apoia no irmão.
Gaza, Trípoli, Bagdad, Damasco, Hiroshima, Ruanda, Rio de Janeiro, ou seria no Getto de Varsóvia? Quando em Varsóvia os militares começaram a evacuação da população do Getto onde haviam empilhado as famílias judias polonesas, e onde essas famílias valorosamente resistiram, eles separaram os homens, as mulheres e as crianças. Houve o momento em que cada criança lançou o último olhar para sua mãe e para seu pai. Aí também Henrique e Talitha deram-se as mãos com algum destemor, engasgados, e simplesmente seguiram.
As visões coletivas compartilhadas como bolhas de realidade tornam aceitáveis as piores ações, mesmo que vindas de povos que apreciam a música clássica, a ciência, entendem de filosofia e psicologia e dedicam muito de seu tempo a educação, a cultura, a cultivar valores elevados e visões equilibradas. Mesmo que tenham razão e sejam regidos por leis.
Rezo pelo Henrique, pela Talitha que foram vítimas. Rezo pelos jovens de todos os tempos e fardas que se tornam veículos das atrocidades, cujos corações dilacerados pela visão de suas próprias ações, ficam incapazes de repousar – vítimas também. Rezo pelos jovens que ao viverem o desabamento dos seus mundos, veem na destruição e na ação impiedosa a força maior e propagam mais adiante essa visão e essa ação. Se ainda houver tempo, que as crianças de Donetski, Luhanski, não passem por isso.
Rezo para que todos entendam e se aliem a força compassiva e amorosa que faz pais e mães cuidarem seus filhos, que faz amigos se ajudarem pela alegria de ajudar. A força que flua sobre nós e nos inspira às visões e ações que constroem a paz e a lucidez.
Rezo para que todos possamos nos perdoar uns aos outros pelas ações alucinadas que podemos gerar das dores e sofrimentos que explodem nossos mundos e nossas vidas. Perdoar é não perder a visão que o mais profundo no outro e em nós mesmos é a natureza brilhante e livre que pode nos reconstruir e recriar mundos de lucidez e de paz. Que a Talitha e o Henrique entendam isso.