Pergunta realizada no Retiro de Inverno 2015, no CEBB Caminho do Meio, na noite do segundo dia.
Pergunta: Como conciliar a visão budista com a crença ou a observação das deidades?
Lama Padma Samten: O Buda vai dizer ‘não há um fazedor do samsara’, não há alguém que tenha construído os seis reinos do samsara. Ainda que haja sofrimento, não tem um criador disso. Esse é um ponto super interessante. Na visão budista, nós não vamos trabalhar com a noção de um mundo externo separado de nós.
Pergunta: então o Buda é ateu?
Lama: O Buda é ateu (risos). Mas o ponto é assim. Por exemplo, o papa agora fez uma mudançazinha. Eu não sei como os estudiosos da Igreja estão sentindo isso. Fiquei feliz que foi um papa gaúcho, que foi lá e ‘pá’ (risos). O papa estava falando sobre a família, eu achei aquilo super profundo. Ele vai dizer ‘vamos olhar a família com o olho de Deus. Como que Deus olharia?’ Isso seria como que uma blasfêmia, nós não podemos olhar com o olho de Deus. Deus olha com o olho de Deus. Cristo olha com o olho de Deus. Nós não temos como olhar com o olho de Deus. Isso é a visão dos teólogos, como foi até agora. Mas ele decerto andou lendo o Dalai Lama, alguma coisa assim (risos). Quem olha com o olho do Buda são os budistas.
Agora, se nós podemos olhar com o olho de Deus, isso é uma grande libertação. Então, nesse momento a Igreja Católica viveu de novo. Porque a tradição revelada, como se tudo o que tivesse sido falado pertence ao passado, mata a religião. O mundo vai mudando e Deus não fala de novo. Mas agora nós podemos olhar com o olho de Deus e falar. É extraordinário, Deus ficou vivo de novo. Então esse Deus o budismo pensaria que seria possível. Na visão budista, não dá muito para personificar esse aspecto primordial. Ele não é um ser que está em algum lugar. Mas eu acredito que, com algumas exceções, os teólogos também não estão pensando em Deus como um ser antropomórfico em algum lugar. O Deus cristão na minha infância era antropomórfico. Mas ele foi mudando.
Talvez alguém ainda pense assim. Por exemplo, os Hare Krishna, dentro da visão do Swami Prabhupada, olham Deus como um ser pessoal, com um corpo semelhante ao corpo humano só que azul. Ele se manifestou como menino e pode se manifestar [de outras formas]; ele é imortal, mas é uma expressão humana. Ele é assim uma personalidade. É como se a gente desse ao sentido grosseiro o sentido máximo. No budismo a gente vai falar em nirmanakaya, ou rupakaya. Mas além disso nós temos sambhogakaya, o aspecto sutil dentro, e temos também dharmakaya, o aspecto primordial. Então dharmakaya é o nome de Deus em nós. Todos nós temos isso.
Mas a gente não vai usar a palavra Deus, porque Deus parece que é alguma coisa que é separada de nós. Então, no budismo não vamos usar isso. Ao mesmo tempo, nós não vamos limitar a inteligência ao aspecto grosseiro que nós estamos utilizando aqui. A gente vai sutilizando, vendo essa inteligência até o sentido primordial além de espaço e tempo. Então quando se vai descrever, em palavras, o que é a natureza búdica, pode-se pensar que estamos falando de Deus. Então o Buda seria ateu num sentido de que ele não vai apontar um Deus antropomórfico, em algum lugar, separado de nós, que é como, em geral, as tradições reveladas vão descrever Deus.
Quando a pessoa vai aprofundando a compreensão da natureza primordial, os teólogos provavelmente vão achar aquilo muito profundo. As pessoas de diferentes religiões vão achar aquilo muito profundo, que é como se fosse uma compreensão mais profunda de Deus também. Mesmo os xamãs vão achar aquilo muito interessante.
Mas o Buda não é contra Deus. Isso é uma boa coisa. O budismo inteiro não se opõe às religiões que professam a noção de Deus; não tem nenhum tipo de oposição. Pelo contrário, tem apoio. As pessoas devem seguir, não devem trocar de religião, a questão budista não é uma questão de crença, de filiação. É uma questão da gente ir olhando cada vez com uma profundidade maior, todas as coisas. Por isso que o budismo dialoga bem com a ciência. As tradições reveladas, por exemplo, tem uma certa dificuldade de lidar com a ciência, porque nas tradições reveladas nós temos que convergir para um tipo de visão que já está pronta, enquanto que a ciência ta sempre aprofundando. Então tem esse diálogo, que é possível. Mas a ciência de modo geral tem alguns pressupostos filosóficos que não precisariam existir, ela fica fixada a algumas visões filosóficas ultrapassadas. Essas visões dificultam um pouco. Mas esse diálogo do budismo com a ciência é um diálogo bem interessante.
Veja a resposta sobre a questão de Deus no vídeo abaixo, a partir de 1h 2m 16s (para outras perguntas na mesma sessão, veja o índice do próprio vídeo):