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Budismo, meditação e cultura de paz | Lama Padma Samten

Como acompanhar alguém que está morrendo?


Alguém tem uma mãe na UTI, super mal, para morrer e os médicos dizem: olha talvez esteja na hora de desligar os aparelhos. Aí vem a pergunta: desliga ou não desliga? O que significa desligar o aparelho? Que conexão cármica levou essa mãe a estar nessa situação?
Esse ponto é crucial. De um modo geral, quando as pessoas estão na UTI elas estão cumprindo a última etapa dos doze elos da originação dependente. É assim, todos os seres surgem e todos os seres cessam. Mesmo as coisas inanimadas surgem e cessam. A impermanência está aí. Então, durante a vida, nós temos essa oportunidade de ouvir os ensinamentos. Quando a gente ouve os ensinamentos é muito precioso. Se a gente tem a oportunidade de ouvir os ensinamentos do Buda, os ensinamentos verdadeiros, originais, que podem transformar nossa vida, isso é o grande mérito de ter nascido com um corpo humano perfeito.
Isso é super raro! Ainda que os seres todos manifestem originação dependente – e originação dependente é a mente do buda, então todos os seres tem a mente de buda, não há essa capacidade, nos vários ambientes, de apontar o fato de que os seres têm a natureza de buda, os ensinamentos não estão presentes em vários locais. Acho comovente isso.
Então, ao longo de uma vida a gente tem essa oportunidade de tomar esses ensinamentos na nossa língua, dentro dos significados ilusórios, dentro dos meios hábeis, das aparências ilusórias, tomar isso e poder nos transformar verdadeiramente. Olhar e reconhecer aquilo que nós temos. Os outros seres também têm, todos os seres têm. Nós temos manifestações de Buda em todas as direções, mas os seres não têm propriamente essa capacidade de manifestar o ensinamento, o ensinamento não está presente, esse que é o ponto.
Então, quando uma pessoa chega ao final da sua vida e ela não teve a oportunidade de ouvir e praticar os ensinamentos, então, isso é doloroso. Nesse sentido, é carma. É carma apenas no sentido de que a pessoa não teve o meio hábil, não conseguiu ouvir e praticar o ensinamento. Ela estava num ambiente super favorável, mas ela não conseguiu.

Refúgio e sensação de morte

Uma vez que ela não conseguiu ouvir e praticar os ensinamentos, o refúgio que ela tem não é um refúgio. A noção de refúgio no budismo só faz sentido como refúgio no Buda. Quando nós olhamos os aspectos comuns das nossas conexões, aquilo não é propriamente refúgio, é o que nós tomamos por recurso para mover as nossas ações. Não é um refúgio. Dependendo de como nós nos vemos e de como descrevemos os ambientes, os nossos recursos são super limitados. De modo geral, quando a pessoa tem a sensação de morte, é porque ela está num ambiente onde os recursos que ela tem se esgotam. Ela não tem mais controle de coisa nenhuma, ela vai perder totalmente aquilo. Por outro lado, se a pessoa tem a clareza sobre a natureza primordial ela pode, simplesmente, relaxar. Relaxar no espaço amplo porque esse espaço é vivo e a vida dela é inseparável daquilo.
Tudo que aconteceu ao longo da vida inteira, as múltiplas aparências foram sempre aparências surgidas por originação dependente como expressões dessa natural liberdade e luminosidade que produz as experiências. Então, nós vivemos isso constantemente. Isso significa nós reconhecermos as aparências como expressões inseparáveis de Darmata. Essa é a realização que a gente precisaria desenvolver durante a vida.
Então, na medida em que nós observamos isso, nós podemos relaxar, não importa as aparências que surjam, nós relaxamos porque as aparências são uma configuração de Darmata e quando a gente simplesmente relaxa, nós estamos nesse espaço aberto, que não é atingido pelas configurações e nem por alterações de configurações. Daquele lugar aberto nós podemos ressurgir. Os seres todos ressurgem do espaço aberto. Então, há essa possibilidade, essa mente comum se funde com a mente de Darmata. Isso é o objetivo do nosso treinamento, objetivo do nosso caminho. É o que nós vamos fazer. E assim nós somos iogues do cotidiano, porque nós vamos aproveitando as múltiplas experiências aparentemente comuns, mas as experiências comuns são experiências de configurações de Darmata.
Nos mover no meio dessas configurações tomando por refúgio a natureza primordial é a nossa prática mais profunda. Mas, vamos supor, essa mãe da pergunta não fez isso, ela não tinha essa chance, então, ela vai ter a experiência de morte.
O Buda diz: envelhecimento, decrepitude, doença e morte. A gente poderia também colocar “impotência” dentro da decrepitude. Uma das características da decrepitude é a impotência. Ou seja, os referencias que nós temos começam a enfraquecer, nós não temos mais força para mover o que a gente precisa. Aquilo que a gente confiava que era seguro, forte e estável, que nós usamos muitas vezes durante a vida, perde a efetividade. Não funciona mais. Nós perdemos aquilo, nossa identidade vai se dissolvendo junto com essa impotência, essa incapacidade de colocar as coisas em marcha, porque aquilo que nós tínhamos vai desaparecendo, vai se esvaindo.
Eu lembro de conversar com o professor Mario Schenberg que era um grande ser, em muitas dimensões. Ele era um praticante budista também, pernambucano, foi exilado, foi uma figura, talvez o físico mais importante do Brasil por um tempo. O Mário Schenberg, no final da vida, tinha doenças degenerativas que foram progredindo. Então, num certo momento ele me disse assim, um pouco emocionado: “esqueci tudo!” Toda a física que ele tinha na mente dele, ele esqueceu tudo!
Eu disse: “Bah, isso é um grande mérito, né! Que vantagem, enfim, agora sua mente está clara, está aberta!” Ele era budista, ele entendia essas coisas. Ou seja, tudo que ele tinha aprendido era inútil mesmo. Mas aquilo foi um pouco de consolo pra ele, porque ele não estava muito convencido do que eu estava falando. Ele, na verdade, estava sentindo a perda. Então, ele era o quê? Ele era aquele conjunto de conhecimentos, mas aquilo foi desaparecendo. Quando ele vinha a Porto Alegre, de vez em quando, ele, às vezes, também ficava ausente no meio de uma palestra. Ele estava dando uma palestra e daqui a pouco ele parava. Nenhuma vez ele roncou. Por um tempo indeterminado aquela pausa produzia uma eletricidade na plateia, que estava sempre cheia, pois ele era uma pessoa superimportante, as autoridades sentadas do lado dele. Ninguém se animava a dar uma batidinha nele, todo mundo esperava. Daqui a pouco ele continuava na frase anterior. Era especial! Ele era artista e crítico de arte também.
Então, tem esse ponto. Quando a pessoa vai perdendo essa capacidade, como a pessoa não tem outra base de segurança, a pessoa vai se sentindo totalmente impotente. Mas a base de segurança do praticante é o espaço. Essa é nossa conexão com a mente livre. A mente livre seria justamente a condição onde nós podemos, a partir dela, exercer de forma mais direta a originação dependente. Nós podemos construir. Então, nesse sentido, o artista está muito mais próximo desse ponto do que o cientista. Porque o artista essencialmente vai usar a originação dependende de uma forma livre e o cientista fica tentando compor as coisas, pegar muitos elementos, juntar tudo aquilo e fazer uma outra coisa que parece que não é totalmente presa. Ele tenta escapar da construção, mas ele constrói os mundos. É muito comovente, muito interessante.
Wittgenstein, por exemplo, vai estudar isso dentro de uma perspectiva filosófica. O filósofo também não é um artista, mesmo que ele esteja olhando com cuidado a mente que produz as coisas, ele não tem a mente que produz as coisas. Ele não tem o dom de simplesmente fazer as coisas acontecerem. Ele está olhando, ele está analisando aquilo.
Então, a pessoa tem a mãe que está se aproximando desse final, eu acho isso super comovente. A mãe está na UTI, está consciente. Eu acredito que o maior benefício desse tempo, eu sempre sugiro isso: se a outra pessoa está consciente, a gente ajuda a outra pessoa a perdoar todos aos quais ela causou problema. Perdoar reconhecendo que, nesse momento que a vida está se esvaindo, os referenciais rígidos que a pessoa tinha para brigar com os outros e se manter fixada em algumas coisas e causar estresse nas relações, aquilo tudo desaparece, então, mais facilmente, nós podemos olhar as situações passadas e pensar: isso não teve importância nenhuma. Aquilo não foi nada! Aí a gente libera aquilo, a gente começa a sorrir.

Purificação dos carmas

Mas a gente precisaria olhar isso. Eu vou explicar como isso acontece. Na medida em que nós guardamos esses aspectos como fixações, que podem estar ocultos, não estão explícitos na nossa mente, essa mente segue operando e mais adiante ela pode produzir sonhos específicos. É como se nós tivéssemos ainda alguns níveis de trauma. Quando acontecem situações específicas, aquilo surge como um carma que impulsiona nossa ação em uma certa direção. Então, a gente precisaria liberar aquilo para não ter a continuidade disso em outras vidas. Isso vale para quando a pessoa morre, mas vale em qualquer momento da vida. A pessoa deveria fazer essa purificação.
Se a pessoa não consegue fazer durante a vida, está bem. Durante o período da aproximação da morte, eu acredito que a pessoa está com a mente mais fluída. Ela seria mais capaz de fazer isso. Quando a pressão baixa, a pessoa está com menos energia, a mente está mais livre. Então ela, mais facilmente, pode se libertar daquele tipo de estresse. Ela pode perdoar os outros e pode perdoar a si mesma. Isso é crucial. Isso vale para a aproximação da morte e naturalmente vale em qualquer momento.

O que fazer na proximidade da morte

Se a pessoa está numa crise, é bom que a pessoa perdoe todo mundo em volta,  todo mundo do passado, perdoe a si mesma também das coisas que a pessoa fez. Isso realmente ajuda. Se a pessoa tem esse comportamento, então a morte começa a ser encaminhada, tem um alívio.
Na sequência, seria crucial que a pessoa tivesse a oportunidade de localizar na sua mãe que está morrendo ou em quem ela quiser ajudar, localizar um ponto de confiança que a pessoa tenha. Jesus Cristo vale com certeza, mesmo para budistas. Então, a gente pensa sobre isso ou ajuda a outra pessoa a pensar se ela acredita que nesse momento em que ela se aproxima da morte, ela vai ficar sozinha, porque Jesus Cristo está ocupado do outro lado, ou porque o Buda não olha para ela, ou porque Amitaba, Cherezing,  Guru Riponche, a energia primordial, a natureza última, buda primordial, não vão estar presentes. Isso não, com certeza, o tempo todo houve essa inseparatividade e, agora, com certeza isso segue. Então, nós colocamos o olhar nesse aspecto profundo e esquecemos o resto. A pessoa já perdoou todo mundo, já se perdoou, agora mergulha no aspecto profundo. Quando a gente vai mergulhar, a gente diz: “bom, tô indo”. É mais ou menos isso, quando mergulhou no aspecto profundo, vai. E aí a pessoa morre.
Se a pessoa estiver muito mal e vocês descreverem esse aspecto, vocês encaminham o processo: “agora você relaxa, olha o espaço, pode ser que a pessoa morra ali mesmo”. A energia vital da pessoa está só sustentada pelo medo, pelo terror, pela aflição, pela incerteza, tem um mínimo de energia que vem disso e nisso ainda tem uma adrenalinazinha que alimenta essa pessoa. Se a pessoa relaxar, olhar, ela encaminha a consciência. Melhor com a pessoa consciente. Hoje está muito comum os médicos também darem uma analgesia, fazerem um coma provocado.
Quando o médico diz: olha ela está com muitas dores, nós vamos induzir um coma, vocês já se despessam porque esse coma é irreversível. É o jeito que os médicos tem encaminhado a morte agora. Encaminha o coma, daí volta lá no dia seguinte: e a minha mãe? Ela está no mesmo estado. No terceiro dia: e a minha mãe? Ela está a mesma coisa, respirando, está bem, sinais vitais estão bem. Ela manifestou alguma consciência? Não, nada. Daí no quarto dia: Olha ela teve uma parada, faleceu.
Aquilo é mais para os familiares se acostumarem com o processo da morte. Assim eles aumentam a analgesia, aumentam as drogas, aprofundam o coma e a pessoa morre. Os budistas, de forma geral, em princípio, prefeririam não morrer assim. Eles prefeririam, eu já não sei se é uma unanimidade, mas eles prefeririam passar pelo que tiver que passar, porque se eles são praticantes do aspecto das aparências, essa é uma oportunidade super rara que acontece uma única vez em uma vida inteira. A pessoa ter esse enfrentamento. A pessoa vai dissolver literalmente tudo que era ilusório, vai se desfazer e a pessoa não tem apoio em mais nada. Então, isso é considerado uma coisa favorável. Os mestres contam várias histórias. Chagdud Rinpoche contou muitas histórias a respeito de mortes assim, mesmo mortes de grandes praticantes que, enfim, não se comportavam como grandes praticantes nessa hora. Aquilo dava uma decepção.
Tem uma história de uma mulher, que era uma grande praticante. Ela passou muito mal, ela gritou, passou mal. Aí, num certo momento, ela recuperou. Clarificou a mente. Ela retornou e viveu mais um tempo. Então, ela explicou: eu passei por isso e purifiquei essas estruturas todas de carma nesse processo. Ela purificou aquilo, retornou e viveu mais um tempo. Não sei se mais seis meses, um ano, uma coisa assim. Então, isso é trazido como um exemplo de que mesmo que a pessoa passe mal, isso pode ser algo favorável, porque a visão comum sobre o passar mal é uma visão associada à estrutura cármica nossa. Nós olhamos sempre num aspecto grosseiro, mas o aspecto profundo às vezes a gente não consegue reconhecer que aquilo pode ser trabalhado desde uma dimensão profunda. Essa praticante tinha isso. Ela tinha uma estrutura de carma que não tinha aflorado e aquilo aflorou. E quando aflorou ela passou mal, mas ela tinha recurso. Então, ela lidou com aquilo e ultrapassou.
O melhor exemplo que eu ouvi desses foi Chagdud Riponche que contou. Então, ainda assim, eu acho que, por exemplo, se a pessoa está com muito sofrimento e ela não está aproveitando o sofrimento, não tem estrutura para aproveitar o sofrimento, eu não acho muito bom que o sofrimento continue. Certas coisas nunca são 100% certas. Tudo que a gente faz tem consequências boas e consequências ruins. Mas eu considero que aliviar o sofrimento de quem não está aproveitando o sofrimento é uma boa coisa.
Eu não acho, por exemplo, que alguém que está em sofrimento necessariamente se torna uma pessoa melhor por causa do sofrimento. Eu tenho a tendência a acreditar que é o contrário. As pessoas em sofrimento vão ficando amargas, vão ficando duras, vão ficando difíceis. Eu tenho a tendência a proteger e evitar que aquilo passe de um ponto. Mas eu entendo que as pessoas possam criticar essa posição também. Ainda assim, eu prefiro desse modo.
Se a pessoa ou os familiares acharem que é útil tomar analgesia, tudo bem, mas, em princípio, para os praticantes é melhor que a pessoa não apague a sua vida antes que ela passe pelas várias coisas em um certo nível.
Ensinamento oferecido por Lama Padma Samten no CEBB Caminho do Meio, durante sessão de perguntas e respostas, no dia 22 de novembro de 2017.
 
Transcrição: Adrea Nochi
Edição: Stela Santin

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