Budismo, meditação e cultura de paz | Lama Padma Samten

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O que fica após a morte se não existe um ‘eu’?

Como a gente vai imaginar que tem um renascimento se não tem uma alma? Como fica essa explicação? No budismo a alma não é permanente. Isso é um ponto interessante. A coisa mais parecida com alma é um conjunto de referenciais que nós nos valemos para produzir a originação dependente que vai criando as aparências, bolhas e identidades. A gente tem esse conjunto de referenciais, mas ele não é uma alma. Quando nós estamos operando, temos esses referenciais e energia, nós temos uma sensação de existência bem clara. Essa sensação de existência transcende o corpo, porque o corpo se movimenta, e a nossa existência tem uma coisa lúcida aí que vê os movimentos, mas diz ’eu não sou isso’. Essa dimensão também pode pensar: ‘bom, se o corpo entra em colapso, eu não necessariamente entro em colapso’. Tem uma vida além da vida do corpo. Os tibetanos, o budismo em geral tem uma superposição com essa visão. Mas a gente não pensa que isso é no momento da morte. Durante a vida, nós temos o aspecto grosseiro, que enfim é o corpo, temos o aspecto sutil que diz respeito ao conjunto de referenciais que a gente usa. E esse aspecto sutil ajuda a construir a própria identidade.
A identidade é um aspecto sutil. A nossa existência não é definida pelo corpo, mas pela identidade. Um ponto super interessante – eu acho que está também dentro das tradições que trabalham com a noção de alma, que não é o caso do budismo – é que o conjunto de referenciais que são usados para a manifestação das identidades pode mudar. Nós mudamos isso, nós temos uma liberdade natural desses aspectos todos que é descrita pelo aspecto secreto. O aspecto secreto tem uma dificuldade de estar presente, de se manifestar dentro da visão das tradições que tratam de alma, porque é como se a alma fosse o início, enquanto que no budismo, já nem é o início, é uma dimensão mais profunda que está além das manifestações, dos desejos, e dos interesses, dos referenciais, etc. que caracterizam um ser.
Esse é o aspecto secreto, que é semelhante ao céu. É a liberdade. É justamente isso que permite nos redefinir, surgir de outros modos. Nós podemos ter um nascimento ilusório na forma das identidades, como a gente já teve, nascimentos ilusórios do tipo bebê, criança pequena, criança maior, adolescente,  adulto jovem, etc. Nós vamos indo, passando por diferentes etapas, em cada uma dessas etapas, pode ser que a pessoa sinta ‘bom, agora eu agora sou um adulto’, ou ‘eu agora sou um adolescente’ ou ‘eu agora sou um velho’, ‘eu agora estou chegando no fim de tudo’. Aí a pessoa pensa ‘eu sou isso’. Nós podemos ir mudando. ‘Eu não sou mais o bebê, eu não sou mais a criança, eu não sou um adolescente’. A pessoa percebe isso. A pessoa se vê mudando. Por vezes a pessoa tem mudanças radicais, como por exemplo transmigrações, a pessoa troca de cidade, troca de estado, troca de país, troca de profissão, a pessoa começa a fazer outras coisas, totalmente diferentes.
Nós temos essa liberdade.
Na visão budista, a liberdade original não pertence ao ser humano, ela está antes da noção do ser humano, ela está antes da noção do corpo dos animais, antes das inteligências condicionadas dos vários tipos. Essa natureza ampla, livre, totalmente sem condicionantes, tem um nível de sabedoria. No budismo o nosso objetivo não é tomar a nossa alma, nossa identidade e fazê-la atingir a condição de Buda. Esse caminho é um caminho onde na verdade nós vamos abandonando os referenciais e portanto a gente vai abandonando as identidades e vai convergindo em direção à uma natureza livre.
O budismo não vai trabalhar com a noção de alma.
Mas o budismo não nega o fato de que, por originação dependente, o conjunto de referenciais que nós temos agora dá origem [a algo]. Pela inteligência da luminosidade da mente nós tomamos os referenciais que temos e construímos as identidades seguintes e dessas outras construções, nós construímos adiante e dessas outras nós vamos indo adiante. Isso é que dá uma sensação de continuidade.
Essa continuidade é parecida com a continuidade do fogo que vai queimando, por exemplo, uma floresta, ou vai queimando um gramado. Ele queima uma parte e o fato de que ele queimou aquilo produz a possibilidade de queimar adiante. O resultado da ação é tomado por base para a ação continuar. Essa continuidade é semelhante à nossa própria [continuidade] porque enquanto nós vamos manifestando nossas identidades, elas vão se queimando, elas vão terminando, elas vão se encerrando. Ao mesmo tempo nós tomamos a base do que foi feito pela identidade para dar uma continuidade de ação que não necessariamente é igual ao que a identidade faria, mas agora é uma outra direção. Dia a dia nós somos um pouco diferentes. No final de um ano, a gente mudou, no final de dez anos a gente claramente mudou. É como uma chama que vai percorrendo, ela vai se extinguindo enquanto queima, mas ela dá origem à continuidade da chama. A chama queima coisas diferentes, produz cheiros diferentes, produz fumaças diferentes a cada momento. Nós somos uma chama que se extingue enquanto queima, mas a base do que ela faz produz as possibilidades que a chama terá adiante. No budismo não é a continuidade de uma alma passeando por vários lugares. É uma manifestação condicionada cujos condicionamentos vão mudando enquanto eles decorrem e queimam. É algo assim. Isso atravessa vida e morte do próprio corpo. Quando nós nos aproximamos da morte, o aspecto sutil da mente é o que queima. Ele vai queimando, vai se dissolvendo, e a base do que é produzido serve como condicionante para os desdobramentos.
É muito importante a gente saber [quais são] os nossos referenciais quando a gente se aproxima da morte porque é a partir daquilo que as manifestações seguintes vão ocorrer. E essas manifestações têm sensação de gostar ou não gostar, têm desejo e apego, têm sofrimento. Mas como o aspecto secreto está sempre junto – é o espaço atrás –, essa própria mente que está queimando, que busca as coisas, pode se voltar para o reconhecimento do aspecto primordial. Isso significaria como que ‘bom estou saindo do jogo, eu não vou jogar o jogo da originação dependente’. Por quê? Porque qual é a mente que joga? É a mente livre que aceita, se referencia por aspectos construídos, manifesta identidades e vai seguindo. Mas esse aspecto livre, ele mesmo pode se retirar daquele conjunto de referenciais ou esse aspecto livre que tem Prajna, que tem Rigpa, pode olhar para aquilo tudo, e sorrir para aquilo tudo, enquanto aquilo se dá.
Um dos aspectos extraordinários que o budismo traz é o fato de que o aspecto secreto tem dentro de si Rigpa, ele tem lucidez dentro dele. Ele tem a capacidade de entender de modo não discursivo e viver de modo não dual, se manifestar de modo não dual. Isso é muito extraordinário! Ele pode produzir toda a dualidade, todos os sentidos esvoaçantes das coisas, mas esses sentidos esvoaçantes são transitórios, tudo surgindo e desaparecendo como no meio de um fogo que segue. Eu acho que eu não respondi, mas a ideia era essa (risos).
Essencialmente no budismo não há o conceito de alma, e não há o conceito de reencarnação. O próprio Buda, ainda que a gente fale em reencarnação, diz “eu ensino o não nascimento e a não morte, para aqueles que são capazes de entender. Para os que não são capazes de entender, eu explico o renascimento.” Mas renascimento é médio. Não é uma boa explicação. Isso é o que o Buda diz. “Os seres são seres de sonhos, imersos em sofrimentos e mundos de sonho.”
 
Lama Padma Samten, respondendo a uma pergunta após a prática da sadana do Buda da Medicina, realizada durante a quarentena em 2020
CEBB Bacopari | 06.jul 2020
Transcrição: José Benetti
Revisão: Saul Sigaran 

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