Quando a gente olha para os outros seres vendo a situação deles a partir da primeira, segunda e terceira nobres verdades, a gente não é mais capaz de culpá-los. A gente não consegue mais culpá-los. A gente tem até dificuldade de dizer o que é que eles são mesmo, a gente sorri para eles!
Se os seres disserem: eu sou gremista, sou colorado, sou cruzeirense, sou atleticano, a gente sorri um pouco, porque aquilo é uma construção, não explica o que a pessoa é, mas explica como é que são as emoções, os problemas e as dificuldades pelas quais a pessoa vai passar, e explica os comportamentos intempestivos, as dificuldades que a pessoa manifesta nas relações, explica tudo. A geração de bodicita vem desse diagnóstico.
Nesse momento, a gente pode entender que nós não temos inimigos, mesmo que as pessoas diante de nós estejam fazendo tudo errado. A gente não consegue acusar, enrijecer, a gente não consegue mais! O que é que a gente vê? A gente olha como que a gente poderia, de algum modo, desarticular a magia que faz a pessoa surgir daquele jeito e produzir aquelas ações todas. A gente fica olhando… como fazer?
Desarticulando um robô
Quando a gente não tem mais esse impulso de produzir culpa, julgamento e condenação sobre o outro, nós olhamos para dentro e tentamos adivinhar o que está acontecendo, buscamos os meios hábeis para desarticular. É como se vocês estivessem diante de um robô operando super agressivo, e então, sem ódio, sem hostilidade, sem lamentação, vocês olham cuidadosamente como que vocês podem ajudá-lo a escapar da ação negativa e chegar até o botão “off”. Aí vocês sobem por trás, abrem uma tampinha e trocam o software do robô!
Essa é a ideia, pessoal, porque aqueles seres estão operando desse modo, então, qual é o sentido de nós termos raiva daquele monstro à frente? O software dele é alayavijnana, é samskara, são as estruturas em que a mesma mente búdica está operando. Nós corremos lá e “click!”, trocamos o software do robô. Esse é o ponto. Isso é bodicita. Se vocês sentirem que a energia circula desse modo, vocês sabem que bodicita está presente. Bodicita é melhor visto através da energia e não da lucidez. Porque a gente pode dizer: ele é um robô, eu não tenho raivas, eu não deveria ter raivas, mas se eu puder destruir esse robô eu destruo! Então, a nossa energia não está acoplada ao discurso, é muito comum nós termos essa discrepância entre a energia e o discurso. O que vai definir se há bodicita ou não é a energia.
O Buda, no Satipatthana Sutra, vai descrever o que é a energia. Isso é surpreendente, maravilhoso! Essa energia é a energia de sustentação do bodisatva, é a energia que sustenta o movimento dos budas e bodisatvas. Ela vem do aspecto livre, não vem do aspecto fixo em alguma identidade, nem tampouco se manifesta a partir da sensação de que aquela inteligência, enfim, é um mestre, ou é um bodisatva, ou é um arhat, ou é um pratiakabuda, ou é alguma coisa auto definida.
Se vocês olharem o Sutra do Diamante, na perfeição correspondente à paciência e paz, shanti, ele vai descrever justamente isso, ou seja, se o arhat disser “eu sou um arhat”, ele não é um arhat. Se um buda disser “eu sou um buda”, se aquilo indicar uma identidade, aquilo também é um problema. Então, as várias identidades seriam como que o samsara retornando, seria o materialismo espiritual. O que há é a liberdade da mente operando livre dos rótulos. Agora não há um novo rótulo, um novo javali, uma nova ignorância, um outro conteúdo para a ignorância, tem a liberação em relação à ignorância. Esse processo se manifesta com a energia, então, na medida em que nós manifestamos paciência e paz, nós nos libertamos das identidades e a seguir nós temos virya, que é a energia que brota desse modo.
O surgimento da bodicita
Isso vai ser simbolizado pelo talo do lótus. Não é que a gente não encontre o sofrimento – que é a água no lago – e as energias negativas e todos os referenciais negativos. Não é que a gente não encontre isso. É que, quando a gente encontra isso, nós não conseguimos acusar os outros, não conseguimos julgar, não conseguimos prendê-los numa identidade e condená-los à rigidez daquilo. A gente vê que aquilo é um sofrimento para aqueles seres, e o que brota em nós é a energia correspondente ao talo do lótus. Então, esse é o nascimento no lótus. Esse é o nascimento de bodicita.
Se nós não entendemos verdadeiramente a primeira nobre verdade, a gente não tem interesse verdadeiro para estudar a segunda. Se a gente não entender a primeira e a segunda verdadeiramente, nós não conseguimos entender a liberação. Se a gente não consegue entender como que aquilo se dá, portanto, a gente não consegue ver a liberação da ignorância, do sofrimento. Mas se a gente entender a primeira, a segunda e a terceira, nós temos uma chance de gerar bodicita. Então, surge o talo do lótus. Quando surge o talo do lótus, surge bodicita.
Se a gente não tiver bodicita, podemos cancelar o programa de ir adiante. Não há como ir adiante sem bodicita. Eu posso pensar que estou indo adiante e fazer qualquer coisa, mas estou ainda num estágio preliminar, onde não entendi a terceira nobre verdade verdadeiramente. Se eu não tiver bodicita, eu tenho julgamento, eu volto a olhar dentro de uma bolha e começo a julgar as pessoas. Isso é um conselho direto para a nossa vida cotidiana. Essa é a dificuldade central que a gente tem quando se movimenta no mundo. É direto isso. A gente não vê a liberdade do outro, a gente vê o outro rígido e tenta derrubar o outro. Aqui nós geramos bodicita: a aspiração de ajudar os seres a ultrapassar seus próprios obstáculos, no mínimo a visão de que os seres podem se libertar dos seus obstáculos.
Bodicita e o reino animal
Nesse ponto de bodicita, nós deveríamos olhar extensamente e contemplar extensamente os outros seres também, todos os outros seres da natureza e reconhecer que todos estão exatamente dentro dessa situação. Assim ultrapassamos o preconceito dos diferentes corpos físicos, como se os corpos físicos trouxessem em si mesmos uma limitação. Os corpos físicos representam o conjunto de marcas mentais nais quais os seres estão operando. Mas eles podem ultrapassar as marcas mentais em que eles estão. Hoje há muitos exemplos de animais protegendo os seres humanos em situações difíceis, de tal modo que eles estão operando com uma mente muito mais ampla do que a mente que usualmente a gente colocaria neles. Especialmente vocês vão encontrar exemplos de golfinhos e baleias protegendo os nadadores de tubarões. Vocês vão ver esse tipo de relato, é muito interessante, eu conheço vários desses relatos.
Eu também já vi animais protegendo animais frente a outros predadores, como elefantes defendendo outros animais frente a predadores. Tem muitos tipos de diferentes exemplos, também cachorros defendendo os seres humanos ou outros animais. Isso significa que surgiu algum nível de bodicita, surgiu a capacidade de olhar para o outro ser e se interessar pelo outro ser, ainda que esse seja um nível de bodicita relativa, pois estão impedindo o sofrimento comum, não têm a compreensão do sofrimento estrutural. Então, que a gente saiba, não tem uma baleia que, de repente, para serena em meio ao mar e convoca as outras baleias e os outros seres para entender a situação geral em que eles estão vivendo, entender a natureza livre da mente deles, e o fato de que eles podem fazer outras coisas. Não tem isso. Mas tem uma capacidade direta de fazer outras coisas, no sentido de trocar de bolhas, jogar outro jogo que não é o jogo usual associado ao corpo deles mesmos. Por exemplo, a gente pensa sobre o que a baleia faz, e ela faz tais coisas. Mas ela faz outras coisas também.
Precisaríamos ultrapassar a limitação que nós temos no próprio olhar com respeito a o que os seres podem fazer, a partir da aparência do corpo físico deles. Entre os seres humanos, nós temos esse preconceito também, que inclui preconceito racial, preconceito sócio-cultural.
Essa é uma parte de contemplação, quanto mais extensa a contemplação nesse sentido, mais nós nos aproximamos de reconhecer que a mente de cada um dos seres pode ser diferente da mente que eles simplesmente operam, a partir da aparência do corpo deles, da gestão do corpo deles.
Os seres, com qualquer nível de corpo, podem fazer qualquer coisa. Eles podem exercer essa liberdade natural. Quanto mais próximos estivermos disso, mais próximos nós estamos da visão de bodicita e da capacidade de não prender os seres com o olhar e classificá-los, julgá-los e fixá-los naquilo. Assim mais perto nós estamos do talo do lótus que vai gerar os meios hábeis nas múltiplas circunstâncias.
Ensinamentos oferecidos por Lama Padma Samten em 13 e 14 de março de 2020 no templo do CEBB Caminho do Meio. Os áudios do retiro estão disponíveis no site da Ação Paramita, na linha temática O Darma do Buda no Mundo. O trecho acima transcrito corresponde ao capítulo 7.
Transcrição: Clarissa Gleich
Revisão e edição: Stela Santin