Budismo, meditação e cultura de paz | Lama Padma Samten

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Praticando o darma através da meditação

por Lama Padma Samten
Utilidade: Para os praticantes entenderem um contexto geral do caminho budista de contemplação e meditação e poderem localizar os desafios que se oferecem adiante e avaliarem as etapas onde restaram falhas — fontes ocultas de obstáculos sutis por vidas e vidas. Este texto oferece também um eixo referencial onde cada um saberá o que fazer prioritariamente.

O caminho de contemplação e meditação

Há várias maneiras de penetrar no Darma. Este processo que descrevemos agora é o que começa com a própria meditação. Ele pertence ao Mahayana, é um método que combina estudo, instrução e meditação, está baseado nos sutras. Não há nenhuma prática de visualização, recitação de mantras, etc. – pelo contrário, é um processo analítico que utiliza a meditação como instrumento. Utilizamos de ponta a ponta todos os processos cognitivos – nenhuma prática ligada a qualquer yidam ou preces, sadhanas, enfim, nenhum elemento do Vajrayana. Não utilizamos nenhum elemento construído, é um processo que busca diretamente lucidez sem nenhum elemento intermediário que não a cognição e serenidade.
No Vajrayana criamos para depois dissolver, aqui não há visualização de qualquer yidam, ou terra pura, apenas o nobre e sereno sentar. Através do efeito combinado da meditação silenciosa e do processo analítico, removemos todos os elementos até reconhecermos o aspecto incessante da natureza não-construída.
É um processo de purificação gradual: pela lucidez removemos progressivamente nossa fixação ao que foi construído. Em nenhum momento é necessário ter fé ou qualquer outra crença. Não é um processo intelectual, no qual geramos uma teoria. Também não privilegiamos nenhum estado mental especial, seja ele instrumento do caminho ou não, e progressivamente ultrapassamos os diversos estados mentais, produtos de nosso próprio carma eliminando a fixação. É o caminho de dissolução das fixações ao que é virtual.
Não consideramos nenhum elemento puro ou impuro, esta análise não pertence ao processo, mas reconhecemos incessantemente liberdades que não víamos antes. A palavra essencial é liberdade. Olhamos os processos mentais e emocionais não no sentido de localizar o que é bom ou ruim, mas no sentido de eliminarmos as marcas que produzem limitação em nossa liberdade. Quando removemos os obstáculos a visão se amplia, é apenas isto. Não é que existam elementos bons e ruins de fato. A visão Hinayana funciona de outro modo, o bom e o ruim é que legitimam uma visão de mundo. Porém, na visão Mahayana não temos panoramas que possam fixar visões finais e elementos positivos e negativos. A visão que temos do mundo está determinada por fatores sutis e estes fatores é que de fato nos aprisionam. Focamos, então, diretamente o que aprisiona, não os elementos bons e ruins criados pela visão condicionada operando desde estes fatores sutis.
Quando olhamos um filme, há coisas boas e ruins, mocinhos e bandidos, e nos aliamos automaticamente aos elementos que nos são simpáticos. De dentro do contexto do filme dizemos: “é mais adequado me conectar aos personagens positivos”, não quero ligar-me aos assassinos, ladrões, estupradores, etc. Como iríamos nos ligar a eles? Assim é a visão Hinayana, operando segundo este enfoque, a mente raciocina segundo o roteiro do filme, aceita a estória e tenta seguir os valores positivos. Na visão Mahayana percebemos que há uma tela e uma luz que é projetada, então podemos nos livrar do próprio contexto proposto pelo roteiro do filme, reconhecemos que há um roteiro e como a experiência de realidade é criada e passa a dominar nossas emoções e dirigir nossa mente. Vemos que nossa identidade está claramente além daqueles personagens.
Na nossa vida cotidiana é o mesmo. As experiências também obedecem fatores sutis que não reconhecemos. Devido a isto, por vidas infindáveis operamos dentro daqueles padrões submetidos a experiências específicas de mundos “virtuais” particulares. A liberação não é estar num lugar seguro dentro do filme, um lugar limpo e bom, mas ver que o processo do filme é construído, é virtual, não é sólido, e, especialmente, que carrega em si liberdades reais, ainda que ocultas e insuspeitadas aos que se fixam na estória. As liberdades são o foco.
Mais adiante desenvolvemos a capacidade de penetrar livremente no contexto do “filme incessante da vida” para ajudar os seres a reconhecer liberdades reais, ocultas pela limitação de sua experiência convencional.
Essencialmente o que fazemos é atravessar esses diferentes panoramas sem ficar cegos pelas visões que surgem. Nosso objetivo é encontrar a estabilidade e a natureza não-construída que está além das aparências. Podemos brincar com isso em uma metáfora: por maiores que sejam os incêndios e explosões nos filmes, a tela nunca queima. A tela é capaz de sustentar as maiores monstruosidades e permanecer incólume, é impossível atingi-la. Assim é nossa própria natureza básica. Conectados ao filme, temos toda a experiência de transitoriedade e nos sentimos inseguros.
No avanço deste processo de retirada de solidez das aparências internas e externas pela prática de meditação, num determinado ponto o próprio personagem que o vive acaba desaparecendo. Não há como isso não acontecer, o personagem é um processo construído e a experiência de liberdade frente a ele acaba aparecendo. Num certo ponto cessa a experiência de alguém que galga etapas ou que passa por essas experiências.
A palavra “mundo” é apenas mais uma manifestação dessa separatividade. Há um ponto onde todas as perguntas sobre deus, iluminação, espaço, tempo, somem. Quanto mais avançamos nos aspectos sutis desse processo de dissolução, menos as teorias, compreensões e cognições fazem sentido. Essas palavras estão dentro da busca de uma compreensão de “como surgiu o mundo”, mas, observe, essa pergunta traz dentro de si mesma a noção de separação. É a pergunta de alguém que observa algo separado de si.
Com o progresso da prática esses elementos eventualmente desaparecem. Na linguagem dos mestres: é como uma névoa que se dissipa, ninguém sabe para onde foi; é como um eco, não há origem para aquele som, mas ele surge. Quando procuramos a origem, não há alguém que tenha produzido o som. O efeito existe, mas não há uma identidade que o produza.
A experiência das vidas anteriores, os carmas acumulados, as experiências de mundo, isso tudo é apenas uma faísca. Surgem e desaparecem. Todas as complicações também são assim. Num momento surge samsara inteiro que dura por éons, mas isso nada mais é que uma faísca atmosférica na eternidade. É como um sonho. Parece denso, pesado, mas quando a pessoa acorda, não tem nenhuma importância. Ali dentro, aquilo é vital, muito importante. É como açúcar na água, não sabemos para onde foi. É como uma frágil gota de orvalho. Também é um halo ao redor do sol – surge não se sabe de onde, e desaparece não se sabe como. Tem uma aparência, mas não tem solidez. É como um rosto visto em uma nuvem. Está lá, podemos achar auspicioso, podemos achar bonito, podemos achar parecido com o pai, com o avô. Podemos acreditar que é uma mensagem, mas é apenas um rosto numa nuvem. Também como um arco-íris – surge magicamente e se dissolve magicamente.
Quando cruzamos por esse ponto, cessa a separatividade e percebemos todas as aparências como experiências de aparências. Vemos que toda a densidade anterior existiu inseparável de nossa ingenuidade. Não é boa nem má, é ingenuidade. Quando esse ponto é cruzado, então todos os elementos se transformam. A impermanência, por exemplo, deixa de ser um infortúnio. Passa a ser evidência da liberdade. Se as coisas fossem permanentes, não haveria mudança, não haveria liberdade. A evidência da não-solidez de todas as coisas é a própria evidência de liberdades ocultas aos olhos ingênuos. Essa é a descrição do caminho Mahayana que utiliza a meditação como processo principal.

Visão do caminho da meditação

Há três formas de introdução ao Darma pelo caminho da meditação. A primeira diz respeito à motivação, a segunda diz respeito à felicidade, e a terceira diz respeito à descrição do caminho espiritual nos termos utilizados pelos mestres.

Motivação

Para quem esta abordagem é útil? Para os seres em perigo iminente ou sensação de desgraça, ele não funciona. Por exemplo, para alguém que é atropelado, se esvaindo numa estrada, não adianta dizer “sente em meditação” – não vai funcionar. Outras práticas podem ser boas nesse caso, P’howa ou alguma outra, mas essa não vai funcionar. Ou a pessoa está faminta, sem comer há dois dias, e chega a um centro de Darma: “hoje você vai receber instruções Mahayana”. Não serve, é claro. Ou uma pessoa que levou um tiro, por exemplo. Elas querem um prato de comida, querem cuidados médicos, nada de meditação para elas. Quando olhamos em volta, vemos muitos seres com a experiência de atropelamento, metaforicamente falando. Nós mesmos, entre um atropelamento e outro, entramos aqui. Somos realmente felizardos…
Depois há seres que não estão soterrados sob quatro montanhas, eles não têm sensação de desgraça, apenas propósitos muito definidos. Estão sobre o domínio de um conjunto de idéias que os impede de avançar, todo o tipo de ideologias e fanatismos. Isto inclui seres que estão sobre o domínio de outros. Eventualmente os maridos, as esposas, namorados, pais, mães, filhos, as pessoas próximas a nós, estão em situações desse tipo.
Depois há os seres que estão no reino dos deuses. Se o sofrimento impede a prática dos seres sob quatro montanhas que experimentam o inferno, a felicidade dos seres na condição do reino dos deuses também a impossibilita. Tanto a felicidade quanto o sofrimento nos aprisionam, nos tornam insensíveis ao processo de meditação. Curiosamente isso inclui processos internos e externos de felicidade, ou seja, inclui também os estados meditativos equivocados.
Então para o quarto conjunto de seres, aqueles que conscientemente desejam a felicidade de um tipo mais permanente, e que conscientemente desejam se afastar do sofrimento, para esses seres é dirigido o ensinamento.
Na conclusão da explicação sobre a motivação, incluímos a perspectiva Mahayana ampla de querer tudo isso não só para si próprio, mas para todos os seres.
Nessa motivação jamais pensamos em causar mal aos outros ou obter benefício próprio a custa de sofrimento dos outros. A princípio apenas queremos a felicidade para nós e nos afastar do sofrimento, é o primeiro ponto e realmente é muito difícil.

Felicidade

Aprofundando o conceito de felicidade, podemos dividi-lo em dois grupos. A felicidade que está na dependência de fatores transitórios, e a experiência de felicidade estável que está além das construções. O segredo da motivação budista quanto a felicidade é buscar a segunda opção, por razões óbvias. A felicidade transitória obtemos hoje, amanhã se torna sofrimento.
Há um casal se separando – por que acontece? É muito doloroso. Eles se amavam e tinham uma conexão, uma casa bonita, dois filhos, uma porção de coisas funcionando e produzindo felicidade. Na separação, cada uma dessas coisas vira elemento de sofrimento: filhos, amigos, conta bancária. Se ficam com um, se dividem, se ficam com o outro, em todos os casos sofrimento. Tudo que a pessoa tem vira ponto de sofrimento, isso é a roda da vida, a felicidade na dependência de condições. Quando a roda gira, e estamos embaixo, tudo que causava felicidade traz agora sofrimento. Assim vemos inúmeras situações. A pessoa funda uma empresa, tem um sócio, todos fazem aquilo crescer, num certo momento as diferenças causam a separação. O amigo era solidez, agora é apenas inimigo. Se a empresa fica na mão do outro, ele deseja que ela afunde. “Ele está usando minha energia vital, não é justo”. Centenas de casos como este.
Assim é a roda da vida. Não é que aconteça só conosco ou só com os outros – não é uma crise pessoal – a roda da vida é simplesmente assim. Quando isso acontece conosco, o melhor que temos a fazer é rir, “de novo a mesma coisa”. Se quisermos satanizar o outro, isso não fica muito bem. Por pior que seja, melhor rir. Seria uma ingenuidade raciocinar em termos de contraposição. Por isso dizemos que quando pensamos em felicidade estável em dependência de fatores externos, é ingenuidade. Buscamos aquilo que está além das construções. Com isso cobrimos os dois primeiros itens, motivação e felicidade.

Caminho espiritual

Aqui sete formas breves de descrever o caminho espiritual:
1. Se alguém pergunta o que é o caminho budista, dizemos que é o Nobre Caminho de Oito Passos. Essa resposta é completa.
2. Se quisermos explicar de outra maneira, podemos dizer que é a remoção dos obstáculos que criam a experiência cíclica. Essa experiência é o que cria o aspecto de solidez do que vemos. No entanto sempre estivemos livres da experiência cíclica, da mesma forma que a tela do cinema está naturalmente livre das explosões que exibe.
3. Podemos colocar isso de forma mais direta, a natureza de nossa mente já é perfeitamente luminosa e livre. Então, o caminho budista é o caminho que descortina a natureza de nossa mente como luminosa, leve, livre. É o caminho que nada adiciona, que nada cria, nada treina, e nada estabiliza. Dito assim pode parecer estranho, sempre nos pareceu que estivemos treinando, estabilizando, etc. O que fazemos na verdade é criar uma espécie de “veículo de praticante”, e esse veículo vai ser abandonado mais tarde. Com nosso veículo usual ordinário, em geral não atingimos a liberação.
No meio do filme nos tornamos Charles Bronson, então alguém argumenta que você pelo menos tem raivas justas, estando na forma de Charles Bronson. O caso é que não achamos justo sentir nenhum tipo de raiva, mas inevitavelmente acabamos operando dentro daquela lógica. Por essa razão criamos um elemento transitório. Não negamos a coerência daquilo, faz parte de ajudar os outros seres perceber a coerência com que eles agem. Só que é indispensável perceber que essa coerência é construída, que existe uma liberdade adicional. Se negamos a coerência com que os outros estão atuando, retiramos o chão de seus pés. Por essa razão devemos evitar a visão filosófica. Ela tenta estabelecer uma nova visão, mas isso apenas polariza o processo. O melhor é dizer que o ser está certo, mas perceber que existem alternativas. Nossa habilidade é reconhecer a liberdade dos outros.
Esses são os vários corolários do caminho espiritual, várias formas de descrever o processo. “Basta remover as construções sobrepostas, dissolver uma por uma as transitoriedades”. Esse processo é dramático, as realidades se sustentam dessa forma.
4. Outra forma de explicar é como o caminho de tranqüilizar a mente. Normalmente ela apenas pula incessantemente de um lugar para outro, interrompendo esse processo de giro ela retoma seu ponto de equilíbrio natural. A mente não é um processo estável, quase sempre está ligada ao processo do galo.
5. Outra forma de explicar o caminho inteiro é dizer que é uma purificação de corpo, fala e mente, até que se tornem corpo vajra, fala vajra e mente vajra. O corpo, fala e mente então manifestam os três corpos da iluminação, nirmanakaya, sambhogakaya e Darmakaya.
6. Garab Dorje, o primeiro guru humano da linhagem nyingma diz: “o caminho inteiro tem três etapas, na primeira etapa ouvimos e geramos a visão, depois meditamos com o poder da visão, e então, tendo liberado os obstáculos agimos de forma livre para benefício de todos os seres”. Podemos explicar o caminho budista dessa forma: ouvir, meditar e agir.
7. Outra forma ainda baseia-se em quatro etapas de treinamento da mente que fazemos incessantemente. Pensamos nos ensinamentos, contemplamos nossa vida, ações e objetos mentais sobre o ponto desses ensinamentos, meditamos focando as coisas a partir da natureza não-construída, e finalmente dissolvemos as aparências e nos liberamos da aparência condicionada que as coisas manifestam.
Essas são várias formas de visão do caminho inteiro. Isso completa a terceira parte desse sobrevôo da visão pelo caminho Mahayana.

Roteiro de prática

A prática em si é aqui proposta em 23 etapas sucessivas. O objetivo deste roteiro é facilitar a visão e a prática do caminho. Outras formas de organização podem ser propostas. A presente abordagem toma a tranqüilização e a lucidez como os instrumentos básicos da busca da liberação da experiência da roda da vida. O método básico é a meditação sentada e a prática na vida cotidiana, de tal modo que progressivamente não haja mais diferença entre a experiência da meditação e as experiências anteriores e posteriores.
As três primeiras são etapas de tranqüilização. O objetivo é desenvolver uma estabilidade que nos permita olhar a realidade, que nos torne menos reativos. Se estivermos muito reativos, muito acelerados, apenas reagimos e não há possibilidade de qualquer sabedoria. Essas etapas são para que saibamos que podemos respirar e estabilizar corpo, fala e mente. Sem isso não há qualquer possibilidade de dirigir o processo, não há como colocar um veículo de sabedoria no nosso caminho. Nesse ponto, e mesmo antes disso, precisamos daquele que vai caminhar, aquele que vai gerar tranqüilidade, aquele que está dominado por uma instabilidade.
Então, na quarta etapa, seguimos um grupo de atividades que vai até a décima primeira etapa, e nesse intervalo trabalhamos purificando a motivação. Pensamos, contemplamos, meditamos e repousamos a mente, fazemos isso incessantemente. Com esse processo conseguimos, enfim, gerar a motivação correta. Acalmamos a mente com as primeiras três etapas, e com essa lucidez podemos avaliar a verdadeira circunstância da nossa experiência cíclica.
A princípio estamos completamente imersos na experiência cíclica. Então, usando essa mente mais calma, examinando conscientemente os processos internos com base nessa artificialidade, usamos essa tranqüilidade, ainda que pouca, para examinar profundamente nossa experiência cíclica. Vamos lembrar que existe alguém que nos ajuda nesse processo, que existem ensinamentos, que há seres que passaram por isso, que geraram uma lucidez que se mantém viva geração após geração. Então examinamos que nosso corpo humano é precioso, que dispomos de condições muito favoráveis, sendo que a maior é que o Buda veio, pregou o Darma e os ensinamentos sobreviveram, então nós estamos em condições de praticar esses ensinamentos. O fato de virmos como seres humanos possibilita esse acesso. Esses ensinamentos são raros e quase inexplicáveis, eles são transcendentes mas se manifestam no mundo condicionado, há uma magia nisso. Então reconhecemos que temos condições humanas perfeitas, que podemos acessar isso, e reconhecemos que nossa vida pode ser tocada pelas bênçãos dos Budas. Podemos ter a experiência de uma vida realmente preciosa. Isso diz respeito aos fatores positivos de que dispomos. Em cada um desses casos, ouvimos, pensamos, reconhecemos e examinamos se estamos conscientes disso enquanto agimos no mundo.
Então, na nona etapa, reconhecemos que estamos sob o domínio da impermanência, que todos esses fatores positivos são transitórios e podem acabar a qualquer momento.
Na décima etapa, reconhecemos que ainda que tenhamos ouvido ensinamentos, ainda que estejamos tranqüilizando a mente, reduzido o fluxo dos pensamentos, ainda que ouçamos ensinamentos freqüentemente, ainda assim o carma nos domina. Estamos a mercê dele, a mercê de impulsos.
Então surge a décima primeira etapa. Ela é a compreensão de que a dependência a fatores produz sofrimento inevitável, a dependência a esses impulsos cármicos inevitavelmente produz um sofrimento, seja esse carma aparentemente positivo ou negativo. A experiência de sofrimento é inevitável. Ela se traduz como vedanas ou como jana-marana, ou ainda como jeti, que são as circunstâncias da vida em que nos sentimos aprisionados. (roda da vida)
Se realmente ouvimos, pensamos, contemplamos nossa vida de acordo com essas etapas, quando chegamos na décima primeira surge uma decisão, que é tomar refúgio na natureza não-construída. Queremos enfim nos afastar de tudo que tenha a ver com a experiência cíclica. Então nos refugiamos no Buda, no Darma e na Sanga. Entendemos o significado disso, ouvimos a respeito longamente, contemplamos, estabilizamos isso, e enfim repousamos novamente. Fazemos isso com cada um dos três refúgios. Conscientes do que isso significa, tomamos essa decisão. Tomamos refúgio na própria natureza não-construída, representada pelo Buda, nos ensinamentos que brotam dessa natureza e geram liberdade com relação às construções.
Os médicos e enfermeiros não rejeitam a doença. Eles desenvolvem meios de superar essa aversão comum. Eles têm apego, não conseguem ver alguém doente que já vão atrás. “Não se mate, não se jogue pela janela”. Esse é um ponto muito importante, não nos afastamos do samsara no sentido “vade retro samsara”, apenas geramos uma liberdade com relação a este processo. Não é uma aversão. Há uma liberdade, os médicos andam pelo meio da doença. O objetivo é ganhar uma estabilidade que está além das doenças, para ser capaz de movimentar-se nesse âmbito sem desconforto.
Então surge todo tipo de especulação: “qual a profecia budista para a nova era? Ser abduzido por extraterrestres?”. Na visão budista fazemos o voto de ser o último a ser evacuado. Os outros seres fazem o voto de serem os primeiros. Se enxergam desgraça, fogem. Todos os seres que têm treinamento, têm uma consciência além das desgraças. Os praticantes budistas fazem esse voto, o Dalai Lama disse que enquanto houver espaço, ele retorna para benefício dos seres.
O importante é colocar a motivação correta na compreensão deste tema. A desgraça acontece, não importa se o ano acaba ou se passa um astro destruidor. No mundo atualmente morrem 10 milhões a cada ano. Não precisamos mais desgraça nenhuma. Considerando que cada homem casa em média com 2 mulheres, sempre vai haver alguma desgraça envolvida… Calculem o número de namoradas então, é como luzes que se apagam e acendem num grande painel… Vejam como é vasto o mundo onde os lamas têm que atuar: 6 bilhões de seres com poucas chances. A situação é gravíssima.
Com estas etapas concluídas, as três seguintes estão engatilhadas. Quando chegamos ao ponto de tomar os três refúgios, então naturalmente vamos entender a décima quinta etapa. É importante examinarmos o que nos leva aos impulsos das ações não-virtuosas de mente. Se estão desenraizadas, isso significa que os três refúgios estão completos. As quatro ações de fala também são um controle de qualidade. Se os refúgios foram feitos de fato, essas ações não-virtuosas de corpo, fala e mente não brotam. Até a décima quarta etapa estamos ainda no primeiro passo do Nobre Caminho de Oito Passos ensinado pelo Buda. Para percebermos como esse estudo é vasto, não foram descritos especificamente os seis reinos, os doze elos, os três animais – todos estes elementos estão dentro da décima etapa (onde examinamos o carma).
Então, ao concluirmos a décima sétima etapa, e a quarta do Nobre Caminho de Oito Passos, surge uma coisa extraordinária. O primeiro elemento realmente transcendente. Finalmente eliminamos todos os elementos artificiais de segurança que geramos através da experiência cíclica. As ações não-virtuosas têm sido nosso elemento de segurança – quando as coisas vão mal, ou matamos ou roubamos ou temos má-vontade. São os instrumentos que temos para nos movimentarmos condicionadamente na experiência cíclica. Quando abdicamos disso, estamos nus, completamente expostos, sem defesas.
Neste ponto ouvimos sobre a fé, sobre a natureza não-construída. Abdicamos de tudo aquilo que está baseado num elemento de vitória e derrota. Estamos como num mato cheio de espinhos com a pele nua, nesse momento nos abrimos para a experiência transcendente do Buda. Vivemos enfim além da experiência cíclica, e nesse momento surge uma estabilidade inexplicável. A serenidade daquilo que é como é, não como um elemento de força. É imune a uma percepção particular, imune a todas as atribulações impermanentes. É como perceber que a tela não explode com as explosões do filme.
Neste ponto estamos sempre em meditação. Nesse momento já temos estabilidade na dissolução das aparências invasivas. Existem elementos externos que fazem parte desse processo. Nessa etapa ainda existe uma fé mesclada com uma liberdade, há uma sensação de abandono e fragilidade. É como a certeza de um ser muito frágil que olha no olho do outro muito maior, e não sabe como, mas não tem medo de ser amassado. Se for, não tem importância, o ser não é mais forte que a verdade que anima aquele pequeno ser. A pessoa simplesmente não recua, não penetra nas 10 ações não-virtuosas. Porém sua fé não elimina a sensação de ser destruída, ainda há um vínculo com uma existência individual. O ser é uma espécie de santo irado e exaltado. Exaltação é uma boa palavra, os terapeutas olhariam e mandariam tomar algum remédio… A pessoa não olha para o tamanho do problema, ela tem uma firmeza inabalável.
Um exemplo que me ocorre é do zen budismo. Não pensem que só os mosteiros de hoje têm problemas. Certa vez uma monja muito linda num mosteiro no Japão, não sei bem como, mas era um mosteiro misto, despertou os ventos de um dos monges. Sabe-se lá o que ele falou para ela. Ele vivia insistindo, e a monja completamente serena. Um dia ela entra nua, numa sala cheia de monges meditando, e diz para o tal rapaz “aqui você tem o que pediu.”
É uma certeza que cruza qualquer barreira. Ela ainda tinha uma consciência individual, uma sensação de ganho ou perda, mas o outro não pode fazer nada, porque não há medo de qualquer tipo. Mas a sensação de vitória está presente, a décima oitava etapa é uma confiança ilimitada. Essa confiança é o que enfim permite a experiência de uma existência além das identidades, além de ganhos e perdas.
Como poderíamos acessar essa região? Nas etapas subseqüentes ela se purifica, mas a princípio nos perguntamos o que nos permite a experiência de estar vivos, o que nos dá a sensação de vida. Isso não está na dependência de uma identidade. Quando percebemos isso, dizemos “sempre foi assim, nunca foi diferente”. E essa é uma característica da liberação. Temos a sensação de que sempre foi assim. É diferente de uma experiência de construção. “Nunca tinha sido assim, que loucura, ufa, até que enfim, que alívio agora”, quando dizemos isso, é uma garantia de que estamos num estado particular, não na liberação. Se for algo que se consegue, eventualmente vamos perder. A liberação não é assim. Quando dizemos “ah! Sempre tive isso e nunca tinha visto”, então sim talvez seja uma experiência verdadeira.
Enfim descobrimos que compaixão, amor, alegria, equanimidade, são qualidades transcendentes. São qualidades que se manifestam transcendendo a identidade. Isso só é possível porque há dezoito etapas anteriores, subdivididas. Essas quatro qualidades são como refulgências da natureza não-construída.
Quando as quatro qualidades incomensuráveis surgem, o aspecto mais importante é que são transcendentes, correspondem ao décimo nono item deste roteiro de meditação. São qualidades que não podem ser praticadas dentro de uma identidade, por isso elas se manifestam dessa forma.
Recapitulando, estamos no quinto passo do Nobre Caminho. O primeiro vai até o terceiro item, o segundo vai até o décimo primeiro item, o terceiro até o décimo quarto, o quarto até o décimo sétimo, o quinto até o vigésimo item deste roteiro.
A vigésima etapa trata de seis caminhos transcendentes. São práticas que só são possíveis enquanto não são praticadas por um alguém. Estão de fato além de alguém e outro, por isso chamam-se “paramitas”, elas nos levam em direção à margem da liberação. Se uma identidade, ainda que mínima, está na prática dessas virtudes, elas não poderiam ser chamadas “paramitas”. As qualidades incomensuráveis, como a compaixão, por exemplo, já são uma manifestação além das identidades. A existência delas é maior do que uma identidade, e assim também é com as paramitas. Não é que o Buda beneficie os seres, ele não vê separação entre ele e os seres, a mente dele não é local.
A experiência maior não aconteceu ainda. Ainda há alguma solidez nesse processo. Então surge a vigésima primeira etapa, o Buda senta sob a árvore, e essa estabilidade não é apenas de corpo, é relacionada com o “corpo ampliado”, digamos assim. Em nossa experiência ordinária de corpo, sentimos algo que nos cutuca e nossa mente opera, estamos centrados nessa experiência. Esse é o limite da mente que opera através dos sentidos.
Livres dos sentidos, podemos adivinhar coisas para frente e para trás no tempo. Essa é a característica da liberação. Sempre tivemos essa característica. Pensamos “minha filha está em casa, já é tarde, amanhã tem prova”. Nenhuma dessas conclusões pertence à natureza dos sentidos, a aula de amanhã não é um som especial que ouvimos. Mas há um sentido de plasticidade, no que seria o tempo e o espaço. Descobrimos que, de acordo com esse movimento aparente, temos emoções, nos sentimos vivos, temos propósitos, urgências. Isso não é local, nem depende de fatores locais, não é geograficamente condicionado.
O que pacificamos e estabilizamos já não é somente esse corpo biológico que vemos aqui. Podemos usufruir da experiência não construída em cada elemento construído. Primeiro reconhecemos a consistência dele como inseparável de nós, o aspecto do próprio objeto como inseparável de nós. Normalmente atribuímos significados automáticos quando permitimos o surgimento dos objetos. E, contemplando assim, penetramos nessa 22a etapa, o último bloco, na operação mental que surge junto com a percepção e reconhecimento das aparências.
Entramos nessa prática para perceber como se processam os processos de cognição. Temos 44 formas de atribuições de significados. Essa etapa está descrita no “Sutra do Coração”. Aqui furamos o véu de Maya. Enfim, entendemos o Buda quando ele diz “ao abrir os olhos os seres fitam a névoa”. Isto fica claro. Há várias etapas dentro desse processo: rejeição da névoa, transcendência da névoa ou pacificação da névoa. Em determinada etapa consideramos isso a prisão, depois algo de que podemos nos livrar, depois pacificamos reconhecendo-a como inseparável da natureza ilimitada, contemplamos com um sorriso o processo todo. Isso nos habilita a quarta forma de lidar com a névoa: retornar a ela para benefício dos seres. Vemos que isso é um processo que sempre esteve presente, quando as “fichas caem”, a gente vê que isso sempre foi assim.
Na vigésima terceira etapa temos o samma-samadhi, uma experiência de absorção na natureza ilimitada, livre de quaisquer construções. É como se fosse a serenidade absoluta da natureza não-construída. Com relação a isso, existe uma completa liberação da individualidade, não há nenhum “eu” envolvido. Isso é particular, o samsara cessou, quando Buda levanta ele volta aos olhos que reconhece a natureza livre dos seres. É a liberação do carma. Na vigésima segunda, há uma discriminação completamente livre. O Buda passeia por todos os mundos, vê os bodisatvas, ele se reconhece inseparável, instantaneamente conectado com todos eles. Entendemos então quando o Buda descreve que “todos os fenômenos manifestam o som do Darma”. Essa é a vigésima segunda etapa. Em samma-samadhi o Buda não está mais num mundo olhando além das aparências, ele cessa a experiência dos mundos. Mas ainda assim, mesmo sem perder a liberdade, ele retorna para benefício dos seres.
Samma-samadhi é o nome técnico do oitavo passo do Nobre Caminho, que corresponde à iluminação, a vigésimo terceiro item deste roteiro, é Darmakaya. Os Budas com essa visão ilimitada manifestam-se nos vários mundos particulares. A partir de Darmakaya incessantemente surgem os corpos da iluminação. Na vigésima terceira etapa ele não vê os seres de forma separativa. Então ele emana os corpos inseparáveis da iluminação. Não gera Sambhogakaya porque há uma “perda de qualidade”, isso se dá porque nesse momento a forma é pura. Os Budas estão fora da roda da vida, eles não estão jogando nenhum jogo, ainda que suas formas surjam. A forma normalmente gera impulsos, ao estilo da cobra e do galo, e então temos consciências separadas de todas as coisas. Essas são as três experiências correspondentes à roda da vida. Os Budas estão livres dos três animais.
De fato, a própria experiência da “mente” cessa na vigésima segunda etapa, ela normalmente opera inseparável do galo, exige uma operação conjunta com a percepção condicionada automática. A natureza mais sutil do galo é a percepção. Quando vemos A, B surge ao lado. Quando vemos qualquer objeto, dizemos “eu gosto daquela cor”, e do processo de percepção brotam os ventos correspondentes. Na vigésima terceira não há mais nenhum, para que ele exista é necessário algum tipo de apego. O processo separativo em si já cessou há mais tempo, desde a décima oitava etapa. Mas ainda resta um apego aos objetos. Quando ele é elucidado, há um processo automático de revelação de significados. A mente, aquilo que opera até a décima oitava etapa, aqui entra na etapa de dissolução.
A iluminação é a nossa condição natural, se é da mente, então temos que usar a palavra “mente” num outro sentido. Mas a natureza última existe, do contrário criamos uma outra dualidade. A mente é uma expressão da natureza última, mas essa experiência convencional de mente que nós temos inevitavelmente vai cessar. Essa experiência está na dependência de um personagem que joga um jogo. Dentro da compaixão a mente ainda opera, mas há um ponto em que ela não mais vai operar, mas segue a natureza ilimitada que gera os inúmeros mundos. O Buda manifestou-se através disso. Ele se utilizou de um corpo. Quando a morte chega ele diz “eu não vim e eu não vou”. Todo mundo entende um Buda que veio, ele diz “vim para um mundo de sonho pregar um Darma de sonho para seres de sonho”. Ele sempre possuiu a percepção ilimitada, ele sempre foi Darmakaya. Mas os seres mantém uma noção geográfica – ele nasceu ali e fez tais e tais coisas, e as pessoas só conseguem ver dessa forma, o que em si mesmo é um milagre, ele ter surgido historicamente!
Aquilo que pensa, esquadrinha, precisa de elementos sólidos. Quando eles não surgem mais, resta a mente ilimitada. Essa natureza é poderosa no sentido de que pode gerar os próprios processos limitados, a natureza de Darmakaya é liberdade.
É bonito ver como se descreve o surgimento do corpo humano nos ensinamentos vajrayana. No princípio ele é auto-gerado, ele se desloca através das montanhas, ele é além da geografia. Ele é o aspecto mais sutil da nossa identidade, e ela é auto-surgida, é translúcida. Ela se desloca e depois vai agregando elementos que vão solidificando esse processo, e camada por camada surge essa aparência que temos agora. Quando de Darmakaya começam a surgir as formas, elas não se estabelecem com ossos e células, mas quando olhamos isso mais de perto, vemos que ela nunca se dissolveu para dar lugar a carne e ossos, ela é ainda etérea hoje. Então podemos perceber essa característica: segue operando e segue se estruturando. Da mesma maneira que um casamento se estrutura, com um carro, uma casa, um papel, famílias que se entrelaçam, isso cria uma solidez. Tudo começou quando um olhou para o outro no banco escolar. Se na semana seguinte ela tivesse adoecido e não tivesse aparecido na aula, não haveria casamento.
Quando recitamos “gate gate paragate parasamgate bodhi soha”, estamos expressando a ultrapassagem do véu. Sem ultrapassar o véu não há como. Ele representa o “Sutra do Coração”, que libera isso tudo. Sem isso o processo segue, a mente pode ser mais ampla, mas ela é a mente, “gate gate” corresponde ao cruzar o rio, por isso ele é considerado o maha-mantra, o mantra que não tem nenhuma construção. Por isso os bodisatvas-mahasatvas não têm medo, eles repousam além das construções. O “Sutra do Coração” é assim chamado porque é o cerne da sabedoria transcendental revelado através dos 44 itens de contemplação apontados no sutra. Vemos lá que “forma é vazio, vazio é forma, forma nada mais é do que vazio”, e assim por diante com morte, iluminação, um por um desses itens. Cada um deles tem 4 aspectos que têm que ser reconhecidos, então multiplicamos e temos 176 pontos de contemplação. Vendo isso entendemos porque Asanga ficou doze anos em retiro, porque Bodidarma ficou 9 anos diante de uma parede e porque o próprio Buda praticou por seis anos em reclusão na floresta.

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